quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Passeio Aleatório. Pela Ciência do Dia-a-Dia. Nuno Crato. «Não se sabe se “pi” é normal, mas até hoje tem passado todos os testes. Claro que é impossível conhecer todas as ocorrências de dígitos e de agrupamentos de dígitos, pois pi tem um número infinito de algarismos. Mas conhecem-se já cerca de um milhão de milhões dos seus dígitos…»

Cortesia de gradiva

A Altura do Rei
«A frustrada tentativa de analisar o túmulo de D. Afonso Henriques (c. 1109-1185) causou celeuma. Entre outras coisas, a antropóloga Eugénia Cunha e os seus colegas da Universidade de Coimbra pretendiam medir a altura do fundador da nacionalidade. Um simples número não será decisivo para rescrever a história, mas é um dado em falta que pode esclarecer outros e levantar novas interrogações.

Está-se a falar das ossadas de um rei que nasceu há quase nove séculos e cujos restos mortais tudo leva a crer estarem perfeitamente localizados. Mais surpreendente, porém, será conseguir medir a altura de um outro homem, que nasceu 18 séculos antes do nosso rei e cuja sepultura se desconhece. Mas isso é possível, pois esse homem era um geómetra. É considerado o fundador da filosofia e da ciência. Falamos de Tales de Mileto (624-547 a. C.), é claro. Quem mais poderia ser? pois esse homem, um dia, em viagem pelo Egipto, ficou surpreendido com a altura da Grande Pirâmide de Queóps. Pensou numa maneira de a medir sem sair do chão. Aplicando um teorema que depois levou o seu nome) notou que a razão entre a altura da pirâmide e a sua sombra era a mesma que a razão entre a sua própria altura e a da sua sombra. Mediu as sombras, fez as contas e chegou à conclusão de que a pirâmide media 85 vezes a sua altura. Foi um feito que surpreendeu os seus contemporâneos e que ainda hoje é recordado. Para o que nos interessa, contudo, é preciso caminhar em sentido contrário. Sabemos hoje que a pirâmide de Queóps mede 147 metros. De onde concluímos que Tales media 1,73 metros. Nada mais simples! Fosse D. Afonso Henriques um geómetra e talvez pudéssemos conhecer a sua altura sem lhe abrir o túmulo.

Cortesia de misterteacher

Os dígitos de “Pi”
O número pi é uma caixinha de surpresas. Na escola aprende-se a aproximação 3,14, mas esses três dígitos são apenas o começo. “Pi” começa com os algarismos 3,1415926535... mas nunca pára. Conhecer todos os dígitos da representação decimal de “Pi” é impossível, de forma que o capitão Kirk, num dos episódios da série ‘Star Trek’, consegue paralisar uma entidade malévola instalada no seu computador mandando-o calcular “Pi” até ao último dígito. Que bom que seria livrarmo-nos dos vírus seguindo essa táctica...
Um dos mais interessantes mistérios de “Pi” é a distribuição dos seus dígitos. Imagina-se, mas ninguém ainda conseguiu prová-lo, que se distribuem de forma completamente uniforme. Em termos técnicos, imagina-se pois que “Pi” é o que se chama um “número normal”. Isso quer dizer, por exemplo, que a frequência com que o algarismo 1 aparece na representação decimal de “Pi” é igual à frequência com que o algarismo 2 aparece, e assim por diante, sendo pois todas essas frequências iguais a 1/10. Mas ser normal significa muito mais do que isso. Significa também que qualquer par de dígitos, por exemplo, «97», aparece com a mesma frequência de qualquer outro par, por exemplo «03». E que o mesmo se passa com qualquer triplo, e com qualquer quádruplo, e assim por diante. E significa ainda que o mesmo acontece se se escrever “Pi” em qualquer outra base numérica.
Não se sabe se “Pi” é normal, mas até hoje tem passado todos os testes. Claro que é impossível conhecer todas as ocorrências de dígitos e de agrupamentos de dígitos, pois pi tem um número infinito de algarismos. Mas conhecem-se já cerca de um milhão de milhões dos seus dígitos, e podem fazer-se estudos estatísticos bastante rigorosos.
Como os dígitos de “Pi” parecem ser uniformemente distribuídos e sem regra evidente de sequência, podem ser tomados como números aleatórios. Claro que não o são, pois seguem-se um a um de forma definida.

Cortesia de edweek

Seguem a ordem 3,141592..., e não uma outra qualquer. Mas podem ser considerados aleatórios, pois não sabendo de onde vêm os números tudo se passa como se fossem gerados ao acaso. Serão aquilo a que se convencionou chamar “números pseudo-aleatórios”. Há processos de geração deste tipo de números em aplicações comerciais conhecidas, como o Excel, por exemplo.
Assim, quando se escreve «=RAND( )» numa célula, o programa insere nela um número pseudo-aleatório. Escrevendo o mesmo noutra célula, aparecerá outro número pseudo-aleatório.

No entanto, uma equipa da Universidade Purdue, nos Estados Unidos, fez novos testes e mostrou que os dígitos conhecidos de “Pi” não se comportam exactamente dessa maneira. Os investigadores de Purdue, compararam a sequência de dígitos de “Pi” com outras dadas por algoritmos de geração de números aleatórios. Chegaram à conclusão de que os métodos artificiais de geração do acaso fornecem sucessões de números que se comportam melhor que as fornecidas por “Pi”.
Não se sabe ainda o que isso significa, para além de uma recomendação para evitar o uso dos dígitos de “Pi” em situações delicadas. Em criptografia, por exemplo, ou em simulação numérica rigorosa, parece ser melhor usar outros números pseudo-aleatórios. Mas pode acontecer que este resultado de Fischbach diga algo sobre “Pi”, embora seja mais provável que diga mais sobre os algoritmos usados em computação. Estes foram tão bem concebidos que parecem melhores que os dados pelo fabuloso “Pi”». In Nuno Crato, Passeio Aleatório, pela Ciência do Dia-a-Dia, Gradiva, Ciência Aberta, 6ª edição, 2009, ISBN 978-989-616-216-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT