quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O Futuro e os seus Inimigos. Uma defesa da Esperança Política. «Nós não estamos num tempo crítico; é o próprio tempo que está em crise. A incrível aceleração do tempo e da história parece ter feito ruir […] toda a nossa capacidade de as configurar de acordo com critérios de responsabilidade»

Cortesia de soldelotus

A paisagem temporal da sociedade contemporânea. Uma teoria da aceleração
«Estamos a viver uma época especialmente acelerada: eis uma experiência compartilhada que se faz presente em aspectos muito diversos da vida, quer individual quer colectiva. As novas tecnologias da instantaneidade propiciaram uma cultura do presente absoluto sem profundidade temporal. A origem desta relação com o tempo encontra-se na aliança estabelecida entre a lógica do lucro imediato, própria dos mercados financeiros, e a instantaneidade dos meios de comunicação. Vivemos numa época fascinada pela velocidade e superada pela sua própria aceleração. Alcançámos, seguramente, um estado da sociedade em que a aceleração já passou além de certo valor crítico, adquirindo uma nova qualidade que destruiu a sequencialidade e a linearidade com que nós percebíamos a realidade e impôs a renúncia a qualquer pretensão de dar um tratamento coerente aos problemas sociais.
Era esta experiência da aceleração que levava Hamlet a lamentar que o tempo estivesse «desconjuntado». Nós não estamos num tempo crítico; é o próprio tempo que está em crise. A incrível aceleração do tempo e da história parece ter feito ruir todas as categorias de que dispúnhamos para a compreensão das transformações sociais e toda a nossa capacidade de as configurar de acordo com critérios de responsabilidade.

Foi talvez a arte que melhor exprimiu esta vivência e as suas aporias. Pensemos, por exemplo, na estética da velocidade que podemos encontrar nos ‘tempi’ da música. No século XIX foram introduzidas na técnica da composição novas prescrições de velocidade, por vezes até ao absurdo. O exemplo mais nítido será talvez a ‘Sonata para Piano nº 22’ de Schumann. «Tão rápido quanto possível», é a indicação inicial. Pouco adiante, outra ordem: «mais rápido». As técnicas de aproveitamento do tempo transformam os movimentos humanos em movimentos de cadeias de montagem, facto parodiado por Chaplin com o achado da «máquina de comer» que permitia alimentar o operário sem necessidade de interromper o seu trabalho, ou seja, sem perder tempo. Podemos encontrar a versão pós-moderna desta experiência naquela personagem de um filme de Woody Allen que diz o seguinte:
  • «Vou suicidar-me. Sim, sim, voarei para Paris e atirar-me-ei do alto da Torre Eiffel. Ficarei morto. Mas se for no ‘Concorde’ Posso estar morto três horas mais cedo. Não, espera. Com a diferença horária, poderia estar vivo mais seis horas em Nova Iorque e três horas depois morto em Paris. Poderia resolver um assunto qualquer e ao mesmo tempo estar morto».

Cortesia de nepo

Este fenómeno é muito complexo, sem dúvida, e não o poderemos compreender se não atendermos à sua ambivalência. É preciso analisar a relação dialéctica entre a aceleração e a estagnação, a simplificação do trato com o tempo que procede da generalização da urgência e das estratégias de combate não tanto contra a aceleração como contra a falsa mobilidade.

Aceleração e Paralisação
Estamos habituados a pensar o tempo como dimensão natural da existência, mas com base na nossa experiência subjectiva e sem plena consciência da sua historicidade, isto é, da diversidade das experiências do tempo. Os diversos momentos e processos históricos têm as suas próprias experiências do tempo. A ideia de aceleração universal instalou-se no cerne da nossa experiência do tempo desde que Rousseau falou no ‘Émile do tourbillon social’. Mas a que nos referimos nós exactamente quando falamos de aceleração? O campo semântico da aceleração pode ser definido segundo três dimensões:
  • “Técnica”. Refere-se ao movimento das pessoas, dos bens e das informações, bem como às velocidades de produção e transformação da matéria em energia e serviços. São acelerações com uma dimensão objectiva que se pode medir em função do tempo aplicado, quer para a deslocação no espaço quer para a realização de processos;
  • “Da mudança social”. É o ritmo com que se modificam as formas de acção e as orientações de uma sociedade. Koselleck definia a estabilidade como a coincidência entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, quando a experiência torne possível a obtenção de chaves para o presente e para o futuro, quando se pode aprender com ela por haver um mínimo de segurança nas expectativas. As sociedades modernas podem ser consideradas aceleradas do ponto de vista da mudança social; isto significa que diminui a estabilidade das nossas referências, que o presente se comprime, dura cada vez menos, em consequência de uma crescente inovação. A aceleração é o incremento da caducidade das experiências;
  • “Do ritmo vital”. É uma consequência da escassez dos recursos temporais. A quantidade de coisas que o sujeito deseja fazer está acima das possibilidades técnicas de aumento da aceleração, o que se traduz subjectivamente na sua sensação de falta de tempo, no medo de perder alguma coisa ou na obrigação de se adaptar continuamente ao que ele não conhece ao certo. Não possui carácter objectivo: é apenas e consequência de uma desproporção. Ao falar de aceleração, costumamos atribuir a sua causa aos instrumentos velozes. Os comboios andam mais depressa, as calculadoras são mais velozes e as modas modificam-se com maior frequência. Ora a velocidade é fundamentalmente subjectiva; significa, principalmente, que queremos fazer mais coisas e saltamos de uma para outra mais frequentemente. Nós vivemos mais aceleradamente, e as máquinas não têm culpa disso. Não existe uma velocidade objectiva, uma medida universal da aceleração.


Uma coisa torna-se mais acelerada em relação a uma velocidade a que estamos habituados. O carro eléctrico foi tido por paradigma do tempo acelerado, e eram-lhe atribuídas consequências para a saúde cientificamente demonstradas, mas é hoje para nós o nostálgico símbolo de um mundo mais lento do que o nosso. Algo de parecido acontece actualmente no caso do “jazz”, hoje considerado uma música de descontracção mas que, quando nasceu, exprimia a nova inquietação da grande cidade norte-americana». In Daniel Innerarity, O Futuro e os seus Inimigos, Teorema, 2011, ISBN 978-972-695-960-1.

Cortesia de Teorema/JDACT