quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto. Luís Manuel de Araújo. «No princípio existiam apenas as águas primordiais, sem vida, o ‘Nun’. Nesse mundo primevo, amorfo e despojado, surgiu uma colina, emergindo do caos aquático; nela, perfilado, estava um deus, provavelmente ‘o deus criador mais antigo que conhecemos’, ou seja, Atum»

Dançarina acrobática do Império Novo. Museu de Turim
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«Na literatura podemos apreciar alguns contos picantes e os delicados e emotivos poemas de amor (Império Novo), além dos mitos religiosos que nos oferecem perturbantes imagens: a pendular deusa Hathor em ousadas manobras de sedução, a venerada deusa Ísis a reanimar o seu prostrado esposo Osíris com passes de magia erótica e, enfim, o concupiscente e malvado deus Set. Estas fortes imagens literárias têm a sua ilustração nos desenhos eróticos dos óstracos e papiros que serão evocados em alguns dos artigos.
Reconhecer-se-á entretanto que a maior parte das imagens datam essencialmente de inânimes épocas tardias, nomeadamente da Época Greco-romana:
  • é que o Egipto faraónico sempre manteve alguma discrição e uma certa reserva nos temas relacionados com a sexualidade, o que desperta ainda mais o interesse dos modernos para saber afinal como era.
Se o tema da criação do mundo e do homem não mereceu um interesse de monta para o pensamento greco-romano, ele está bem presente nos textos oriundos das antigas civilizações da Mesopotâmia (nomeadamente em ‘Guilgamech’ e na epopeia cosmogónica ‘Enuma elich’), em Israel (no famoso Génesis bíblico) e no Egipto.
Os mitos egípcios da criação reflectiam o pensamento especulativo dos letrados dos templos que desejavam, no afã de exaltarem a primordialidade do ‘netjer’ que henoteisticamente veneravam, saber e explicar a origem de tudo: do universo, dos homens e até a origem dos próprios deuses, os quais estariam assim subordinados ao deus em cujo templo serviam. Em alguns dos mitos cosmogónicos do antigo Egipto assume um papel de relevo a actividade sexual do criador, pelo que, analisando o processo criacional por via do erotismo demiúrgico, se pode ter alguma ideia da mentalidade egípcia no tocante à sexualidade.

Duas pesadas figuras nilóticas de fecundidade
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Interessa-nos abordar o aspecto sagrado e mitológico que, em termos de erotismo demiúrgico, vai radicar nas divindades forjadoras de vida a partir da actividade sexual. Logo à cabeça, Atum de Heliópolis, deus … que se auto-fecundou na colina primordial para, a partir dele, do seu sémen, brotarem os outros deuses. É no âmbito do erotismo demiúrgico que serão introduzidos os deuses copuladores, com especial relevo para o tifálico Min de Coptos e de Akhmim, pois também eles, como os humanos, não desdenhavam passar «um belo momento» (‘al nefer’).Muitos deuses do antigo Egipto estavam de uma forma ou de outra ligados à sexualidade:
  • Atum, Amon, Khnum, Min, Osíris, Hórus, Sobek, Herichef, e outros, sendo que entre as deusas assumem preponderância Hathor, Ísis, Iusas , etc.
É que, do ponto de vista religioso, «a sexualidade tinha importância devido à sua relação com a criação e, por associação, com o renascimento no Além» no fundo, como escreveu Georges Bataille, e no Egipto bem se entende, «todo o erotismo é sagrado». A sacralização do erótico apreende-se tanto na primordialidade da emergência do cosmos ordenado como na temática escatológica omnipresente no quotidiano egípcio.
Nas paredes dos túmulos, as casas de eternidade dos defuntos, vislumbra-se bem a miscegenação do sagrado e do erótico, recriando liticamente, pictoricamente, o começo, o fim, o recomeço, a eternidade:
  • o erotismo sagrado patente dos espaços tumulares e em templos funerários reveste-se de uma dupla finalidade, pois assegura o renascimento através do poder sexual e permite ao finado ter no Além, isto é, nos Campos de Iaru, uma vida eterna sumamente agradável.

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Das várias divindades demiúrgicas, deter-nos-emos em particular nos casos de Atum, Min e Ptah. Amon (ou, na forma sincrética, Amon-Ré) é como que o remate de um longo processo, vindo a apropriar-se de faculdades e características demiúrgicas de outras divindades, sem no entanto as destruir; pelo contrário, precisava até delas para robustecer o seu poder criador de «rei dos deuses» (‘nesu netjeru’). Do demiurgo tebano se dirá então claramente: «Tu és Amon, tu és Atum, tu és Khepri». Reunirá em si três formas de criação, trabalhando como oleiro e veiculando a palavra que dá a vida.
No princípio existiam apenas as águas primordiais, sem vida: o Nun. Nesse mundo primevo, amorfo e despojado, surgiu uma colina, emergindo do caos aquático; nela, perfilado, estava um deus, provavelmente «o deus criador mais antigo que conhecemos», ou seja, Atum. E era em Iunu (Heliópolis), e ele tinha vindo à existência por si mesmo.
Para criar o resto do universo, recorreu o demiurgo a um procedimento que o haveria de celebrizar: na quietude pré-cósmica, sozinho na colina do sossego, […] assim originando «o tema mais popular da criação ao longo da história egípcia».
Deixemos tão inquietante e primordial gesto à interpretação dos eruditos e estudiosos:
  • A partir do texto de Hermann Kees, Siegfried Morenz evoca-nos o transcendente acontecimento, dizendo que «Atum, tornado … em Heliópolis, tomou o seu … e assim criou a voluptuosidade». E então, a imanente «força/potência» que residia em Atum, essa força ‘misteriosa e imaterial’».
In Luís Manuel de Araújo, Estudos sobre erotismo no Antigo Egipto, Edições Colibri, Temas Pré-Clássicos, 2000, ISBN-972-8285-05-0.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT