segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. Leonor Teles. «Mas por motivos vários, que agora não vêm ao caso, não consegui alcançá-los. Ou melhor, o senhor conde, meu estimado tio, não me deixou alcançá-los. E após um instante de silêncio, acompanhado por um rigoroso soluço, prosseguiu: - Que hei-de fazer eu à vida? Diz-me, minha boa amiga, que destino vai ser o meu?»

Cortesia de oficinadolivro

«Diz-me, Briolanja! Como posso eu partilhar o meu corpo com um fidalgo rico de bens, é certo, mas pobre de sentimentos? Ou me engano muito ou ele espera de mim, apenas e tão-só, uma esposa dócil, a esposa fértil que lhe multiplique a família, lhe perpetue o nome e a descendência.
- Senhora, o que quer dizer de seu ao senhor conde? - perguntou Briolanja Mendes, depois de a jovem interromper o discurso para limpar os olhos à manga do balandrau, colocado cuidadosamente sobre os ombros.
Leonor Teles fitou séria o rosto de Briolanja, com as mãos ajeitou a crespina que lhe cobria as longas tranças e, sem pestanejar ou mudar de expressão, respondeu num tom de voz quase inaudível:
- Dizer-lhe que não quero casar com João Lourenço. E, após uma prolongada pausa, concluiu: - Simplesmente isso.

Do exterior da casa, na zona da cozinha e dos currais, chegou naquele instante o ruído simultâneo de vozes e do batimento no lajedo dos cascos de um cavalo. Briolanja levantou-se imediatamente e, espreitando pela fresta da janela por onde entrava um feixe de luz pálida como a cor do dia, verificou que não era ninguém com direito de acesso ao interior do solar.
- Não há nenhum problema de sermos vistas, senhora, é o almocreve que acaba de chegar com mercadoria para o celeiro; está ali à conversa com dois criados.
Leonor temia que algum nobre da casa, parente próximo ou afastado do conde, as descobrisse, tão perto uma da outra, numa atitude de estranha cumplicidade, e fosse contar isso a João Afonso Telo. E este, todos o sabiam, não apreciava que a sobrinha mantivesse contactos demasiado íntimos com as aias ou camareiras residentes na sua casa. Gostava de separar as águas.

Cortesia de wikipedia

Mais tranquila, não só pela ausência de qualquer empecilho que lhe estragasse a conversa, mas sobretudo pelos desabafos que lhe iam libertando a alma de tanto lixo, Leonor Teles prosseguiu:
- Sabes, Briolanja, quero casar, sim, mas com um homem que eu ame e me queira amar. Já conheci alguns na minha vida; poucos, é verdade, e tu melhor que ninguém o sabes. Mas por motivos vários, que agora não vêm ao caso, não consegui alcançá-los. Ou melhor, o senhor conde, meu estimado tio, não me deixou alcançá-los.
E após um instante de silêncio, acompanhado por um rigoroso soluço, prosseguiu:
- Que hei-de fazer eu à vida? Diz-me, minha boa amiga, que destino vai ser o meu?
Briolanja Mendes não respondeu logo. Fez uma pausa, pôs-se de pé, persignou-se duas vezes, e só depois disse:
- Deixe-me rezar primeiro, senhora. Com as mãos recolhidas no balandrau e juntas ao peito, Leonor Teles ficou a observar a velha a dirigir-se ao genuflexório colocado sob o pequeno santuário numa das paredes do compartimento para rezar às imagens de vários santos o páter-nóster, o credo, a salve-rainha e a ave-maria. Lá estavam, lado a lado, numa espécie de altar iluminado por lâmpadas votivas, as imagens de São Geraldo de Braga, Santa Maria do Bouro, Santa Maria do Pombeiro, São Salvador de Valongo, Santa Maria do Lago, São Servando e, até mesmo, São Clemenço do Mar.
Com tantas rezas, difícil seria que nenhuma das santificadas criaturas deixasse de iluminar a inteligência de Briolanja em ordem a prestar-lhe toda a capacidade de aconselhamento. Era, aliás, nessa graça divina que assentava a esperança de Leonor Teles, por tanto acreditar que só mesmo Briolanja seria capaz de lhe indicar a solução definitiva do problema.


Cortesia de wikipedia

De joelhos no chão, com a cabeça entalada entre as mãos roxas do frio e rugosas da idade, Briolanja Mendes rezava, oração atrás de oração, num ritual só comparável ao do Advento ou da Quaresma. Uma vez concluídas as numerosas preces, pôs-se de pé, com uma mão massajou os joelhos para aliviar a dor e, virando-se para a jovem dama que esperava dela um bom conselho, apenas prometeu:
- Senhora, se não se importa digo-lhe amanhã o que há-de fazer. Preciso ainda de consultar as estrelas...
- Consulta-as então e diz-me depois o que te disserem.
Só junto à porta as duas mulheres se despediram: uma foi para a sala; a outra, para o sótão. Na sala comum da casa encontravam-se já prontos para a ceia João Afonso Telo, alguns fidalgos, um tabelião, o alcaide da terra e dois amigos do conde. À excepção do dono da casa, que ocupava a cátedra sobre cujo pousadouro podia observar-se uma almofada de veludo castanho, os restantes, sentados no chão, em cima de tapetes, levantaram-se imediatamente à entrada de Leonor Teles.
- Por quem sois! - exclamou ela com um sorriso forçado e a voz ténue.
Estiveste a chorar? - perguntou João Afonso Telo, ao ver-lhe as pálpebras inchadas e vermelhas.
- Não, meu estimado tio, foi um cisco que me entrou para os olhos, e de os esfregar fiquei neste estado.

Depois, temendo que o conde voltasse a interrogá-la sobre o assunto, pediu licença para se retirar e desculpas por não os acompanhar na refeição. Aí todos assentiram e se curvaram ligeiramente, sobretudo quando ela abandonou e sala, excepto o alcaide que, esquecendo-se das regras que impõem uma espessa cortina de respeito e de pudor, ficou estático, perturbado, a olhar para o traseiro da jovem até ela desaparecer do umbral da porta.

- Há algum problema? - perguntou sorridente João Afonso Telo, despertando o alcaide da sua aparente indiligência.
- Nenhum, senhor conde, nenhum... - respondeu ele titubeante, enrubescido, incapaz de disfarçar a vergonha pela exibição da sua grosseira atitude». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT