domingo, 22 de janeiro de 2012

O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média. Manuel Cadafaz Matos. «O mais antigo desses cancioneiros, é o “Cancioneiro da Ajuda”, que terá sido organizado, seguramente, pelos finais do século XIII. A esse se seguiram o “Cancioneiro da Biblioteca Nacional”, igualmente designado por “Colocci-Brancuti”, bem como o “Cancioneiro da Vaticana”»

Cortesia do institutoportuguesdopatrimoniocultural

«Havendo muito a esclarecer sobre esta matéria, neste naturalmente nebuloso período da história medieval portuguesa, o que não se pode ignorar é que, em 1102, cerca de nove anos depois da cessação de funções de Pedro como Bispo de Braga, o papa Pascoal II confirmava «o censo anual ou votos que a igreja da Compostela recebia por cada junta de bois que lavrasse a terra entre o rio Pisuerga e o mar: "a flumine videlicet Pisorgo usque ad litus Oceani annuatim ex singulis boum paribus persolvendum».
José V. Capela retomou as investigações acerca desta mesma matéria anteriormente efectuadas por padre Avelino da Costa (embora reportando-se, na especificidade, a um período muito mais tardio). Este autor sublinhou, com efeito, que, segundo o documento respeitante à promessa feita por parte do rei das Astúrias Ramiro I ao Apóstolo Sant'Iago - documento esse que passou a designar-se por «privilégio dos votos», em agradecimento pelo auxílio recebido na batalha contra os Sarracenos em Clavijo, em meados do século IX, «prometeu por si e pelo povo do seu reino, a oferta perpétua à igreja de Santiago de Compostela e seus cónegos, de uma medida de pão e outra de vinho por cada junta de bois que lavrasse em território liberto ou a libertar do domínio árabe com o auxílio do Apóstolo».

Da história religiosa e das instituições à arqueologia da cultura oral dos peregrinos
Mas, se os nossos arquivos são verdadeiramente ricos quanto à existência dos mais variados códices que nos testemunham a situação e evolução da vida das instituições sociais e religiosas do Norte de Portugal (ou ainda do Condado Portucalense), e importa-nos aqui, em particular, o que se prende com o culto compostelano na Idade Média, não menor riqueza encerram no que respeita à cultura oral dos peregrinos.

jdact

As fontes que, a este respeito, constituem recorrência obrigatória são, como aliás não podia deixar de ser, os nossos cancioneiros. Importou-nos assim analisar em detalhe o conteúdo destes mesmos volumosos códices (de alguns dos quais têm sido feitas as mais variadas, embora nem sempre cuidadas, edições) e rebuscar neles referências que nos permitissem obter novas achegas em relação ao culto compostelano no oeste ou noroeste peninsular.
O mais antigo desses cancioneiros, é o “Cancioneiro da Ajuda”, que terá sido organizado, seguramente, pelos finais do século XIII. A esse se seguiram o “Cancioneiro da Biblioteca Nacional”, igualmente designado por “Colocci-Brancuti”, bem como o “Cancioneiro da Vaticana”. Infelizmente, o que de ambos se conhece são cópias realizadas em Itália já no século XVI, tendo os originais aí contidos sido datados (sem grande margem para erro), pelos vários especialistas que já ao longo deste século e mesmo do anterior se empenharam em investigar tal questão, do século XIV.
Quando Correia de Oliveira e Saavedra Machado procederam a uma divisão temática da produção poética trovadoresco-medieval portuguesa, optaram por uma classificação que incluía os períodos pré-alfonsino, alfonsino, dionisíaco e pós-dionisíaco. Esta sistematização, atendendo aos períodos de datação estabelecidos por Carolina Michaëllis de Vasconcelos, pressupõe:
  • período alfonsino, até 1245;
  • período alfonsino, em que o principal cultor foi, ao que é sabido, o rei Afonso X, o Sábio, até 1280;
  • período dionisíaco, até 1300;
  • período pós-dionisíaco, depois dessa data.


Pormenores da porta da Glória, Compostela
jdact e wikipedia

Embora no período pré-alfonsino não tivéssemos descortinado na produção poética (do “Cancioneiro da Ajuda”) referências explícitas ao culto a Sant'Iago ou a peregrinações ao túmulo do Apóstolo, nomeadamente através dos três principais cultores líricos deste período, Gil Sanches, Martin Soarez e Paay Soarez de Taveiroos, o mesmo já não sucedeu no período alfonsino.
É neste período, com efeito, que para lá de tudo o mais desponta a grande envergadura intelectual de Afonso X, autor das “Cantigas de Santa Maria” de tanta nomeada, e que além do seu culto à Virgem teve uma veneração muito especial pelo Apóstolo, o que aliás é traduzível em algumas das suas «cantigas».
Nesta época da segunda metade do século XIII, quando a autonomia linguística do «proto-português» passou já a ser uma realidade, os «cantares» dos nossos trovadores assumem uma singular identidade com os das vizinhas regiões de Castela. É desta forma que as poesias de Afonso X em louvor ou invocação de Sant'Iago podem ser vistas como algo de imaginário colectivo galego-castelhano, envolvendo, naturalmente, também todo o noroeste português.
Quando Afonso X leva a efeito a sua monumental obra “Cantigas de Santa Maria” é a identidade literário-religiosa peninsular que vem ao de cima e não a de autores situados numa componente geográfica exterior ao país recém fundado.

Túmulo de Afonso X
Conde Henrique
jdact e wikipedia

Essas «cantigas», no seu fulgor musical e estético-literário, têm assim ainda o carisma de uma realidade intrinsecamente luso-castelhana». In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.

Cortesia de Instituto Português do Património Cultural/JDACT