terça-feira, 10 de janeiro de 2012

D. Sebastião e o Vidente. Deana Barroqueiro. «Apesar do amor do príncipe, nunca se sentira bem na corte portuguesa, por isso se fechara em si mesma, mostrando-se dura e altiva, entregue às suas devoções, porém sempre atenta às intrigas palacianas que lhe chegavam aos ouvidos pela voz de Lourenço Pires de Távora, o seu dedicado valido português»

O rei Sebastião em jovem
Cortesia de wikipedia
«O infante nascera no dia vinte de Janeiro do ano de mil quinhentos e cinquenta e quatro, dia de S. Sebastião. Janeiro fora sempre para a infanta Joana o mês predestinado aos grandes sucessos, bons e maus, da sua vida, como o casamento com o herdeiro do trono de Portugal, dois anos antes, a sua viuvez há precisamente dezoito dias e agora o nascimento do primeiro filho. Atendendo ao seu estado, o rei e a rainha tinham tentado esconder-lhe a morte do marido e haviam dado ordens para ninguém entrar na sua câmara em trajos de luto, mas ela acabara por adivinhar a desgraça.
João morrera! O seu amado esposo morrera longe dela, porque os velhos invejosos e néscios os tinham separado, negando-lhes o consolo de um último beijo, da derradeira despedida. O príncipe adoecera gravemente em Outubro de ‘hebetica passio’ (diabetes), um estranho mal que lhe provocava intensa sede e grande fraqueza, e os físicos haviam declarado como causa da doença os excessos do amor a que o casal se entregava e insistiram na separação dos esposos, por serem contrários a um casamento tão prematuro. Com grande desgosto de ambos, ela fora levada para os aposentos da rainha, com licença para visitar o marido apenas duas ou três vezes por dia.
Todavia, em vez de o salvarem, ao apartá-los um do outro, tinham-lhe abreviado a morte, impedindo-a de cuidar dele, privando-o dos seus desvelos de esposa e amante, da sua atenta vigília. Naquela fatídica primeira noite de Janeiro, durante uma curta ausência do enfermeiro, incapaz de sofrer a sede que o atormentava, João saltara da cama e correra à janela para ensopar uma toalha na chuva que caía, bebendo aquela água bendita que lhe mitigara o martírio, mas o fizera tombar desacordado mesmo antes de conseguir voltar ao leito, vindo a falecer às três horas da tarde do dia seguinte, deixando-a viúva aos dezoito anos e cheia de ódio contra aquela nação.
Agora, na sua amargurada solidão, memórias dos presságios e visões que se tinham manifestado no dia das suas bodas vinham atormentá-la como uma acusação por nada ter feito para os esconjurar. Mas que poderia fazer a pequena infanta estrangeira senão estremecer e rezar, invocando a protecção da Virgem contra aquele horrível ataúde de fogo a incendiar os céus? Como poderia ter impedido o herege Robert Gardner de profanar a capela real, lançando ao chão o cálice com o vinho e esmigalhando a hóstia consagrada com as mãos imundas? Se nem ainda hoje lograva entender o significado daquela visão de um cortejo de mouros que, salmodiando num estranho linguajar e levando tochas acesas nas mãos como em enterro, atravessara o seu quarto fechado e desaparecera sem deixar outro rasto senão um frio mortal na sua alma que a fizera tombar desacordada...
Apesar do amor do príncipe, nunca se sentira bem na corte portuguesa, por isso se fechara em si mesma, mostrando-se dura e altiva, entregue às suas devoções, porém sempre atenta às intrigas palacianas que lhe chegavam aos ouvidos pela voz de Lourenço Pires de Távora, o seu dedicado valido português.
A mãe de Sebastião I
O pai de Sebastião I
Cortesia de wikipedia
Afundou o rosto suado e exangue nas macias almofadas do leito, ansiosa por solidão e sossego, procurando alhear-se do coro de louvores e de receitas das parteiras e amas que, na outra câmara, limpavam e enfaixavam o recém-nascido a berrar de desespero.
- Não devereis nunca lavar o infante com água quente, para não lhe fazer os tutanos lânguidos, alvitrava a voz presumida da parteira.
- Mas, mesmo nos frios do Inverno? - escandalizou-se uma aia.
- A água fria faz os tutanos fixos e o miolo maciço, assi com mais habilidades e mais forças, tudo mais cedo - volvia a aparadeira, com doutorice. - E ao menino nunca lhe metam medos, nem cocos, que lhe fica com isso o coração trémulo e ele medroso.
Desejou mais do que nunca a presença da sua mãe e cerrou os olhos para impedir as lágrimas de correrem. Apesar das aias e dueñas, vindas consigo da Casa Real de Castela aquando do seu casamento, sentira-se sempre uma estrangeira na corte portuguesa e, agora, ficava ainda mais só com a morte do esposo escolhido pelos pais, mas de quem se enamorara e por quem fora adorada. João e Joana, tal como duas faces de uma só moeda ou duas metades de um mesmo fruto, não podiam nem sabiam estar apartados um do outro.
Assaltou-a um tumulto de imagens dos seus corpos nus sobre o leito - apesar do defeso dos padres confessores que lhes censuravam o excesso como pecado de fornicação, dos gestos de ambos, tocando-se com dedos receosos e inábeis primeiro, depois cada dia mais afoitos e gulosos do prazer partilhado, aprendendo um com o outro os mistérios do amor e da cópula, jamais saciados de beijos e carícias. Joana sentiu as suas entranhas, apesar de rasgadas e doloridas do parto, pulsarem de vida e explodirem de desejo, para logo se contorcerem de agonia numa saudade antecipada, quando um fluxo tépido de sangue ou de humor vaginal lhe ensopou os panos que a resguardavam.
Estaria condenada a enlouquecer por amor como a avó espanhola, cujo nome herdara, que vivia ainda encarcerada na sombria prisão de Tordesilhas, ou como a trisavó portuguesa, a rainha Isabel, que escolhera encerrar-se para sempre no castelo de Arévalo, após a morte do marido?
O rei Sebastião I
Cortesia de wikipedia
A cabeça doía-lhe das magoadas recordações e quisera não ser a filha do imperador das Espanhas para poder gritar à sua guisa, expulsar a gente ruidosa que lhe enchia a câmara e depois repousar o corpo exausto do parto, desse longo martírio em que sentira as suas carnes atravessadas por setas de dor mais agudas e cruéis do que as sofridas pelo santo mártir invocado como padroeiro em hora tão terrível para os salvar, a ela e ao filho, da escura morte. Como penhor da sua gratidão, se lho permitissem, haveria de chamar Sebastião ao príncipe, predestinando-o a ser o primeiro rei deste nome em Portugal e talvez também em Castela, como desejava no mais secreto do seu coração.
Era doce aquele repouso, depois da lenta agonia por que passara, porém um sopro frio que pareceu gelar o ar em volta do leito fê-la abrir os olhos e, petrificada de horror, viu sair de entre as sombras da câmara o vulto alto e esguio de uma mulher toda vestida de negro, com uma touca larga que lhe escondia o rosto, mesmo quando cresceu para o leito e se inclinou sobre ela, sem falar, mas soltando um sopro como se lhe enviasse um beijo na ponta dos dedos. Gritou bem alto para abafar o chocalhar seco e áspero de galhos ou de ossos que parecia sair de entre os panos soltos e esvoaçantes daquela assombração e as aias irromperam pelo quarto alvoroçadas de medo:
  • - Tendes dores, Alteza? Quereis alguma cousa?
  • - Chamai o físico! Ide avisar a Senhora Rainha!
Sossegou-as, sem nada lhes dizer da terrífica visão, dominando a impaciência com o pensamento reconfortante de que uma tão numerosa e inquieta companhia haveria de manter afastada a sinistra visitante. Adormeceu, por fim, a murmurar uma oração de graças ao santo protector do recém-nascido, suplicando-lhe que impedisse o Anjo da Morte de o vir reclamar de novo». In Deana Barroqueiro, D. Sebastião e o Vidente, Porto Editora, 2006, ISBN 972-0-04139-0.
Cortesia de Porto Editora/JDACT