segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A narrativa cavaleiresca. João de Barros e a Crónica do Imperador Clarimundo. «Reflecte a opulência e o optimismo do momento de maior brilho para a corte e a empresa imperial portuguesas, através da justaposição do passado mítico/cavaleiresco com o presente histórico»

Cortesia da fcg

Crónica do Imperador Clarimundo de João de Barros (excerto)
«Impresso pela primeira vez em 1522, e dirigido originalmente ao Príncipe D. João, e em edição posterior ao mesmo, já Rei João III, que aparentemente teria “corrigido” os erros do escritor novel, é obra de um rapaz de pouco mais de vinte anos, que muito jovem entrou ao serviço de Manuel I. Embora hoje em dia se conheça o autor por obras mais sisudas, as suas Décadas da Ásia, por exemplo, em vida a fama se devia sobretudo a esta crónica, testemunho eloquente da popularidade do género e da maneira como João de Barros o apropriou. Reflecte, esta narrativa, a opulência e o optimismo do momento de maior brilho para a corte e a empresa imperial portuguesas, através da justaposição do passado mítico/cavaleiresco com o presente histórico, como o próprio título indica: "Crónica do Imperador Clarimundo" donde os Reis de Portugal descendem. Introduz, simultaneamente, e não sem manifesta consciência e orgulho do autor, elementos, sobretudo retóricos, do humanismo.
[...]
A intenção de João de Barros foi evidentemente, desde o início, a de exaltar a coroa portuguesa; mas a matéria, fruto duma tradição e vinculante, deve-lhe ter, de certo modo, forçado a mão. É assim que, nos primeiros dois livros, os de inspiração declaradamente heróico-cavaleiresca, o “Clarimundo” não se afasta em nada, ou quase, dos modelos castelhanos, repetindo personagens, situações e motivos já anteriormente tratados, sobretudo no “Amadis”. [...]

Cortesia de betterworldbooks

Nascido do casamento de Adriano, rei da Hungria, com a filha do rei de França, “Clarimundo” é tirado aos pais pelas intrigas de uma ama. Abandonado junto duma fonte, é recolhido por Grionesa, nobre viúva italiana, e educado por esta como filho. Ainda muito jovem pede e consegue ser armado cavaleiro pelo rei de França, que ignora ter diante de si o próprio filho. Iniciam-se, neste ponto, as maravilhosas aventuras e as muitas peregrinações do herói que é, entretanto, reconhecido pela mãe, acabando depois por encontrar ‘Clarinda’, a mulher da sua vida, filha de Apolinário, imperador de Constantinopla.
A relação amorosa segue os esquemas clássicos do género: é um sentimento sublime que consegue superar os obstáculos e dificuldades de toda a espécie e que será coroado pelo matrimónio, primeiro consumado em segredo, depois realizado oficialmente, após “Clarimundo”, com outros cavaleiros, ter derrotado as forças do Grão-Turco que haviam chegado a ameaçar as muralhas de Constantinopla.
No contexto destas aventuras deve ser referida aquela que, com todo o direito, pode ser considerada a mais importante do romance, visto que constitui o verdadeiro objectivo da sua composição.
No capítulo IV do terceiro e último livro encontramos “Clarimundo” em Portugal, na companhia do mago “Fanimor”, desde sempre o seu protector oculto. Este condu-lo ao alto da torre de Sintra e aqui, tomado pelo espírito profético, descreve-lhe em versos a sua gloriosa descendência: dele procederão os reis de Portugal que estenderão o seu domínio desde as regiões orientais extremas até às mais ocidentais.
A profecia de “Fanimor” ocupa no seu conjunto 41 oitavas e uma quadra em versos de ‘arte maior’, mas por si só confere um sentido novo a todo o romance. “Clarimundo” não é, ou não é mais, um dos muitos heróis dos romances de cavalaria; a sua função não se resolve simplesmente ao nível pedagógico exemplar, já que a sua acção, o seu heroísmo e a sua “corteisie”, recebem também um superior crisma épico.

Cortesia de triplov 

O valor literário desta parte lírica não é, atenda-se bem, proporcionado à importância que ela assume no interior do romance: longe de qualquer tentativa de crítica histórica, tudo se reduz a uma árida lista de nomes que nada têm em comum com a história da dinastia portuguesa que nos é apresentada por Camões nos “Lusíadas”, e em que a figura que adquire maior relevo é a do rei Manuel I, de quem se enumeram os domínios e as terras conquistadas.
Trata-se, todavia, da primeira tentativa quinhentista de poesia épica em Portugal e como tal terá que ser avaliada, em função, também, do contexto em que é introduzida.
João de Barros antecipa-lhe o aparecimento desde o Prólogo em que afirma ter sabido, de um «fidalgo alemão», como Afonso Henriques fora na realidade filho segundo de um rei da Hungria, neto, por sua vez, do imperador “Clarimundo”. A referência a este parentesco lendário se, por um lado, introduz aquela dimensão fantástica que informará depois as vicissitudes cavaleirescas, coloca ao mesmo tempo o romance num plano diferente dos anteriores castelhanos: o leitor português é posto em condições de captar, graças àquela advertência, o sentido profundo, histórico se se quiser, do protagonista, seguindo-o nas suas aventuras através do mundo sem limites da narrativa cavaleiresca.

Sem aquela antecipação, para um nível mais baixo de leitura, a história de “Clarimundo”, tal como nos é narrada nos primeiros dois livros, não apresentaria nenhum elemento de novidade no que respeita à tradição, sentindo-se apenas no início do terceiro livro uma inesperada mudança do registo estilístico e narrativo. O próprio cenário, com efeito, muda neste ponto, passando-se de uma moldura imaginosa e ausente de qualquer referência espácio-temporal precisa, para um Portugal geograficamente conotado, em que a acção cavaleiresca acaba por adquirir um sentido novo. Não se pode falar, evidentemente, de realismo, mas sim de uma atmosfera onírica em que o fantástico é mediado através da experiência real (veja-se, por exemplo, a justificação mítica que o autor dá de alguns topónimos).
“A Crónica do Imperador Clarimundo” vive e é vivificada por este desdobramento de planos:
  • de uma parte o maravilhoso fantástico, da outra o maravilhoso histórico, ambos em relação dialéctica entre si.
Por esta via o romance adquire uma nova funcionalidade enquanto se precisam, em perspectiva, as motivações narrativas». Ettore Finazzi-Agró, Novelística Portuguesa do Século XVI, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978, Fundação Calouste Gulbenkian, HALP, 2003.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT