sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Cavaleiro da Águia. Fernando Campos. «Com a sua mesnada de homens, Gonçalo Mendes cavalga em direcção a Zamora. Na ponte do Douro, à entrada da cidade, os soldados de Urraca reconhecem-no e franqueiam-lhe a passagem. Do cimo dos adarves, os homens da condessa Urraca vêem chegar as hostes do rei Sancho de Castela»

Gonçalo Mendes da Maia, o "Lidador"
Cortesia de heroismedievais

Corcéis brancos...corcéis pretos...
«Pelas abóbadas da igreja, pela claustra da abadia ressoa o cantochão dos frades, ante os restos mortais da rainha Sancha.
Seu filho Sancho não lhe sofre o ânimo, sendo primogénito, não o tenha o pai, Fernando Magno, deixado herdeiro de todos os domínios de Leão, de Castela, da Galiza, que se estende até ao Tejo, e da parte de Navarra que vai até ao Ebro. Escuta distraído o canto fúnebre, olha de invés para os irmãos ali ao lado:
  • Alfonso, muito sério;
  • García, indiferente;
  • Urraca, apertando o sentimento na comissura dos lábios;
  • Elvira, chorosa.
Atrás de si, os nobres senhores, os guerreiros. Lá mais para o fundo, a transbordar do templo, o povinho. Quando a função terminou, no dobrar dos sinos Sancho, sem uma palavra aos irmãos, montou a cavalo e abalou carrancudo, acompanhado de seus homens.
Urraca seguiu-o com os olhos: - Nossa mãe, pensou, enquanto viveu, embora viúva manteve em respeito as ambições de meus irmãos. E agora?
O chefe dos exércitos de Sancho é Rodrigo Díaz de Bivar, a quem ele, ainda príncipe, havia armado cavaleiro. - Ordenaremos as hostes – diz-lhe o rei Sancho. - No princípio do ano, mal as neves da Cantábria degelarem, atacaremos Leão.
Por Março, começaram a brilhar os córregos, a despenhar-se cascatas por encostas, pegos e vales, já se afoitavam de jornada os peregrinos pelos caminhos de Santiago.
Sancho ataca Alfonso. Os dois exércitos defrontam-se. Alfonso é vencido mas consegue lhe conceda tréguas o irmão. Três anos se passam, quebra Sancho o pacto e, em Golpejar, investe de improviso sobre Alfonso. Os leoneses saem vencedores... Quê? O Cid vencido? Pela primeira vez? admira-se o povo.
Os nossos foram os melhores, murmura-se, corre fama estava presente, a ajudar o comandante Pedro Ansúrez, o braço valoroso daquele Gonçalo Mendes que veio com seus guerreiros das terras da Maia... Não se contava era com a excessiva confiança de Alfonso, não se esperava traição. Após a batalha, enquanto em seu acampamento os soldados leoneses repousavam descuidados, Sancho, a conselho do Cid, cai de surpresa sobre eles. Grande é a matança e o rei Alfonso preso.

A morte do "Lidador"
Cortesia de purl

Quando a nova chega a Zamora, Urraca envia mensagem ao irmão Sancho: a maldição de Deus caia sobre ti, se, em nome de nosso pai Fernando e de nossa mãe Sancha, não libertares Alfonso.
Ordena então Sancho que lhe tragam Alfonso à presença:
- Vou libertar-te, mas terás de prometer-me que tomarás hábito de monge e não mais pensarás em governar.
- Assim farei.
- Terás escolta até São Facundo e aí recolherás ao mosteiro.
- Irmão, considera no que estás a fazer Despojaste-me do meu reino. Agora, adivinha-me o espírito, caminharás para a Galiza a despojar nosso irmão García... Que loucura te tomou? Sancho não replica. Dá suas ordens. Alfonso sai acompanhado de escolta. Com a sua mesnada de homens, Gonçalo Mendes cavalga em direcção a Zamora. Na ponte do Douro, à entrada da cidade, os soldados de Urraca reconhecem-no e franqueiam-lhe a passagem.
Já sobe aos paços da condessa, que o recebe rodeada da sua corte condal:
- A que vens, Gonçalo Mendes? Pareces perturbado. Fugido certamente não é, se bem te conheço.
- Senhora. Sancho a vosso pedido libertou Alfonso, mas obrigou-o a tomar hábito e mandou-o com escolta para São Facundo.
- Vejo escapaste à chacina que a traição de Sancho havia preparado aos leoneses.
- Estava com uma companhia de mercenários de Portucale. Havíamos erguido as tendas numa clareira, afastados do restante acampamento. Sentimos a traição, desaparecemos. Mas não ficámos parados. Fizemos espera à escolta que levava Alfonso a São Facundo e atacámo-la. Libertado, Alfonso dirigiu-se a Toledo a pedir asilo ao rei mouro al-Mamün, que o recebeu com a maior distinção.
- E agora - disse a condessa Urraca - Sancho deve querer submeter-me a mim também, não é?
- Caminhou para a Galiza a destronar García, que fugiu para a corte do rei de Sevilha. Depois, em Toro, submeteu vossa irmã Elvira. Agora...
- ...dirige-se para aqui.
- Não tardará a vir cercar Zamora.

Do cimo dos adarves, os homens da condessa Urraca vêem chegar as hostes do rei Sancho de Castela. Brilham ao sol da manhã os elmos doirados, faíscam espadas bem temperadas, luzem lorigas, cotas de malha, a floresta de lanças. Vêm de todos os lados, da banda da terra, da outra margem do rio. Lá cavalga o esquadrão do rei em seus corcéis brancos, com os orgulhosos pendões ao vento. Lá galopam os cavaleiros do Cid em seus corredores cor-de-amora, com os impantes gonfalões a tremular.
- Urraca - brada Sancho para o alto da barbacã -, rende-te e evitarás a chacina, a pilhagem do teu rico espólio. Jurar-me-ás preito e menagem e continuarás a ser condessa de Zamora.
- Vai-te embora, Sancho. Se não te lembras de que sou tua irmã, Deus te fulmine. Guardarei a vontade de nosso pai e a memória de nossa mãe.
- Rendição ou morte - brada do outro lado Cid, o Campeador, para o alto das muralhas.
Responde-lhe das ameias uma chuvada de setas.
- Rendê-los-emos pela fome e pela sede - disse o rei Sancho.

Cortesia de amigosdeportugal

Sete dias e sete noites ali ficam sitiando o castelo roqueiro, mas de dentro não chegam sinais de rendição. Até que, pela calada da oitava noite, um vulto se esvai furtivo e silencioso pela porta da traição e se aproxima das tropas de Sancho, a pedir asilo. Levam-no ao rei.
- Quem és tu? Trazes recado de minha irmã?
- Senhor. Chamo-me Velido Adaúlfes. Sou soldado e desertei. Não trago mensagem de vossa irmã, mas digo-vos que pela fome nunca conseguireis dominar Zamora. As tulhas estão cheias de pão, os currais de gado, as cisternas de água até os bordos.
- Porque desertaste?
- A condessa mandou-me açoutar por eu ter dito que seria melhor render-se e viver em paz convosco.
-A praça é forte?
- Muito forte, meu senhor. Sobretudo, há lá um guerreiro, com seus homens das terras da Maia, que é tão valente ou mais que o vosso Rodrigo Díaz de Bivar.
- Então achas que levante o cerco e me vá embora? Não queres ser vergastado também aqui, pois não? - Não, meu senhor. E isto vos quero dizer: há um ponto fraco, uma brecha, naquela forte muralha de granito e homens aguerridos. Ninguém a notou, senão eu.
- E onde é? - Vinde comigo, senhor, pela quietude das estrelas. Nada de levar cavalo nem companhia. Bastava um resfolegar do animal, o tilintar de aço, para alertar as sentinelas. Pode parecer um contra-senso, mas crede se vê mais nas sombras da noite que à luz do dia. Vinde. Ao romper da manhã Zamora será vossa.
O rei Sancho ergueu-se, deu suas ordens e saiu da tenda acompanhado de Velido. Meteram pela espessura de pequeno bosque que corria a par das penhas em que se erguia o cubelo norte do castelo. O traidor ia à frente e, de vez em quando, virava-se atrás a Sancho afazer sinal o seguisse em silêncio. A alguns passos da estreita senda que subia à porta da traição, volta-se súbito e enterra o punhal no coração do rei. Sancho cai por terra sem um grito, eram as Nonas de Outubro de 1110. Velido sumiu-se no castelo, tão silencioso e ratoneiro como se havia esgueirado». In Fernando Campos, O Cavaleiro da Águia, Difel, 2005, ISBN 972-29-0735-2.

Cortesia de Difel/JDACT