domingo, 1 de julho de 2018

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Foi um espectáculo que ninguém jamais vira em toda a Gotaland Ocidental, foram as cores brilhantes da roupagem dos bispos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Cruzadas
«O ano da graça de 1150, quando os hereges sarracenos, a escória da terra e a guarda avançada Tio Anticristo infligiam aos nossos muitas derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e deu a ela uma revelação que mudou a sua vida. Talvez se possa dizer, também, que essa revelação conduziu a uma situação que encurtou a sua vida. Com certeza sabemos que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o monge Thibaud escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito Santo apareceu diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um novo reino na Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se chamar Suécia. Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de Abril, num dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de Verão e em que o gelo começava a derreter na província de Gotaland Ocidental. Nunca antes se juntou tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma missa comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova catedral. As cerimónias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera três voltas à igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo facto de o bispo Õdgrim ser muito velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além disso, ele parecia um pouco confuso, pois leu a primeira oração em linguagem popular em vez de em latim: Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume esta Tua casa e domina neste templo, assim, todos aqueles que se reúnem aqui para rezar vão poder receber o Teu conforto e ajuda.
E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível o Seu poder, quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi um espectáculo que ninguém jamais vira em toda a Gotaland Ocidental, foram as cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listras douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão celestial que nenhum ser na Gotaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que estávamos sob o tecto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os construtores borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados sem que tudo não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter ficado zangado diante da pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima, até Ele. A senhora Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo, achavam que ela era durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a caminho e fazer a difícil viagem para Skara, porque a Primavera chegara cedo e os caminhos ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da ideia de se sentar numa carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado em que estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que, tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade ela não tinha obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezasseis anos, seu pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido de uma tia sem filhos uma herança na província de Gotaland Oriental e, por essa razão, ter-se transformado em alguém que podia casar, não importando com quem, de preferência a ficar enclausurada num convento.
Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando devia ajoelhar-se, quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a ave-maria, sempre que algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as pessoas deviam fazer as suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia as suas orações silenciosamente, pedia pela sua vida. Deus dera-lhe um filho, três anos antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse filho. Por duas vezes o Sol nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores. Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram, no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados e a extrema-unção. Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais aquele pânico da morte, pediu ela na sua oração». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial Record, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.

Cortesia de EBertrandB/JDACT