segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Manuscrito. John Grisham. «Ed recebia várias cartas destas por semana, todas elas idênticas em muitos aspectos, da parte de autoproclamados especialistas e peritos em Fitzgerald…»

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O Assalto
«O impostor apropriou-se do nome de Neville Manchin, um professor de Literatura Americana em Portland State em vias de fazer o doutoramento em Stanford. Na sua carta, em papel timbrado da universidade, falsificado na perfeição, o Professor Manchin dizia ser um estudioso de F. Scott Fitzgerald e estar muito interessado em ver os manuscritos e documentos do grande escritor durante a sua próxima visita à Costa Leste. A carta estava endereçada ao doutor Jeffrey Brown, Diretor da Divisão de Manuscritos, Departamento de Livros Raros e Colecções Especiais, Biblioteca Firestone, Universidade de Princeton. Chegou ao mesmo tempo que outras, foi devidamente separada e encaminhada, acabando por ir parar à secretária de Ed Folk, um bibliotecário de carreira cujo trabalho, entre outros, consistia em verificar as credenciais da pessoa que escrevia a carta.
Ed recebia várias cartas destas por semana, todas elas idênticas em muitos aspectos, da parte de autoproclamados especialistas e peritos em Fitzgerald, e até de um ou de outro verdadeiro académico. No ano civil anterior, Ed tinha aprovado e registado cento e noventa dessas pessoas através da biblioteca. Vinham de todo o mundo e chegavam de olhos arregalados e intimidadas, como peregrinos diante de um santuário. Ao longo de trinta e quatro anos, nesta mesma secretária, Ed tinha processado todos os pedidos, que não davam sinais de abrandar. Scott Fitzgerald continuava a fascinar. O movimento era agora tão intenso como há três décadas. Mas, hoje em dia, Ed interrogava-se sobre o que poderia haver ainda da vida do grande escritor que não tivesse sido já objecto de análise pormenorizada e reduzido a escrito. Não há muito tempo, um verdadeiro estudioso tinha dito a Ed que havia agora pelo menos uma centena de livros e mais de dez mil artigos académicos publicados sobre Fitzgerald, versando o homem, o escritor, as suas obras e a sua esposa louca.
E isto tendo morrido de tanto beber, aos quarenta e quatro anos! Imagine-se como seria se tivesse chegado a uma idade avançada e continuado a escrever... Nesse caso, Ed precisaria de um ou dois assistentes, talvez até de uma equipa completa. Mas Ed também sabia que a morte precoce era muitas vezes a chave para a aclamação póstuma (já para não falar no acréscimo de ganhos com os direitos de autor). Passados uns dias, Ed começou finalmente a tratar o pedido do professor Manchin. uma rápida consulta ao registo da biblioteca revelou que era um novo utilizador e, por conseguinte, um pedido novo. Alguns dos veteranos tinham ido tantas vezes a Princeton que se limitavam a ligar-lhe e a dizer: olá, Ed, vou aí na próxima terça-feira. Ed não tinha problemas com isso. Mas não era o caso de Manchin. Ed entrou no sítio da Universidade de Portland State e encontrou o seu homem. Licenciado em Literatura americana pela Universidade de Oregon; mestrado na UCLA; professor assistente desde há três anos. A sua foto revelava um homem de aparência comum com cerca de trinta e cinco anos, uma barba incipiente provavelmente temporária e óculos estreitos, sem aros». In John Grisham, O Manuscrito, 2017, Bertrand Editores, 2018, ISBN 978-972-253-544-1.

Cortesia de BertrandE/JDACT