sábado, 28 de julho de 2018

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Pareceu-me reconhecer nos olhos aterrorizados de meu irmão o olhar de uma criança judia prestes a lançar-se na travessia do mar Vermelho»

jdact

A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) De ambos os lados da rua, apinhava-se uma multidão formando duas filas irregulares recortadas contra as poeirentas fachadas brancas do casario que se estende até à Sé. Gritos a pedir água e misericórdia soavam como um coro antifonário. Podiam aí ver-se as muitas e desvairadas gentes da nossa cidade: cavaleiros e camponeses, barregãs e freiras, pedintes e escravos pretos, e mesmo marinheiros do Norte de olhos azuis. Subitamente, bandos de cães vadios desataram a correr, sempre a ladrar, atrás de mim, frei Carlos Judas, dirigindo-se para ocidente, acompanhando o espectáculo. O padre semicerrava os olhos e murmurava orações agitadamente. Eu aspirava profundamente o gélido perfume de ameaça que pairava no ar. E esta noite, pensei, estaremos a lançar à imprevisível corrente deste mar de loucura o barco proibido da Passagem. Assim era: as nossas comemorações deveriam ter começado exactamente há uma semana. Mas a maior parte dos judeus clandestinos, incluindo a nossa família, tinham adiado a Páscoa na esperança de navegar a salvo por entre as águas corruptas da maledicência dos cristãos-velhos à nossa volta.
Perto de nós, um lenhador imundo, com o cabelo desgrenhado, de repente desatou a gritar com quantas forças tinha: para termos a chuva dos céus, temos de ter mais sangue! Lisboa tem de se tornar numa Veneza de sangue! Judas encostava-se às minhas pernas e eu apertei-lhe o ombro. Frei Carlos esfregava as mãos na sua testa abaulada, como para se proteger. Era um homem corpulento, atarracado, com uma pele suave e pálida, um nariz carnudo, uma rede de veias vermelhas nas duas faces, da muita bebida. Poucos o levavam a sério, mas eu considerava-o um bom amigo. Os seus olhos desolados poisaram-se em mim: não há nada de que os homens mais gostem do que profanar o sagrado, meu filho.
De súbito invadiu-me um sentimento de tristeza pelo nosso fado. O cheiro da pimenta das índias entontecia-me, borrifos de sangue salpicaram as minhas calças e a cara de Judas. Um dos flagelados, soltando guinchos, tinha arrancado restos da pele dos ombros e esparzia especiarias sobre si próprio para merecer o aguilhão do amor de Deus. Pareceu-me reconhecer nos olhos aterrorizados de meu irmão o olhar de uma criança judia prestes a lançar-se na travessia do mar Vermelho. Fui percorrido por uma premonição fulgurante, inusual pela sua convicção: esperámos demasiado, os judeus de Lisboa, para reviver o êxodo e o Faraó apercebeu-se dos nossos planos. Quando voltei a mim, frei Carlos, disfarçando o olhar sob uma franja da sua capa, alertou-me em voz baixa: ouve os lamentos daquele moço flagelado..., é como se fossem os gemidos dos filhos do Diabo! Judas fitava-me com uma curiosidade assombrada e expectante. Quando as lágrimas assomaram aos seus olhos, peguei nele, limpei-o, desfiz-lhe os compactos anéis do seu cabelo negro como carvão. O meu irmãozito passou-me os braços em torno do pescoço e eu respondi a frei Carlos: muito obrigado. Consigo e com estes loucos, acho que por hoje já recebemos instrução religiosa que chegue». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
                                                                                                                                 
Cortesia de QuetzalE/JDACT