quinta-feira, 5 de julho de 2018

A Relíquia. Eça de Queirós. «… um velho óculo de alcance, relíquia do comendador G. Godinho. Depois do café a Titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado, na sombra do lenço roxo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Então o doutor Margaride estendeu a mão pacificadora e solene: está tudo explicado! O nosso Teodorico foi imprudente, mas o sítio onde esteve é respeitável... E eu conheço o barão de Alconchel. É um cavalheiro da maior circunspecção, e um dos mais abastados do Alentejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietários de Portugal... O mais rico, direi!... Mesmo lá fora não haverá fortuna territorial que lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça! Centenares de contos! Milhões! Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras de ouro. E o bom Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura: tome o seu chazinho, Teodorico, vá tomando o seu chazinho. E creia que a tia não deseja senão o seu bem... Puxei, com a mão a tremer, a minha chávena de chá; e, remexendo desfalecidamente o fundo de açúcar, pensava em abandonar para sempre a casa daquela velha medonha, que assim me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a nascer, forte, respeitável e negra.
Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do comendador G. Godinho. Eu via-as, maciças e resplandecentes, diante de mim; o grande bule, terminando em bico de pato; o açucareiro cuja asa tinha a forma de uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil, em figura de macho trotando sob os seus alforjes. E tudo pertença à Titi. Que rica que era a Titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à Titi! Por isso, mais tarde, quando ela penetrou no oratório para cumprir o terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martelando o peito, e suplicando ao Cristo de ouro que me perdoasse ter ofendido a Titi. Um dia enfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor metidas num canudo de lata. A Titi examinou-as reverente, achando um sabor eclesiástico As linhas em latim, às paramentosas fitas vermelhas, e ao selo dentro do seu relicário. Está bom, disse ela, estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves; vê não lhe faltes... Corri logo ao oratório, com o canudo na mão, agradecer ao Cristo de ouro o meu glorioso grau de bacharel. Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba que, agora, tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e a esfregar as mãos.
Boa nova vos trago aqui, senhor doutor Teodorico! E depois de me acaridar, segundo o seu afectuoso costume, com palmadinhas doces nos rins, o santo procurador revelou-me que a Titi, satisfeita comigo, decidira comprar-me um cavalo para eu dar honestos passeios, e espairecer por Lisboa. Um cavalo! Oh, padre Casimiro! Um cavalo. E além disso, não querendo que o seu sobrinho, já barbado, já letrado, sofresse um vexame, por lhe faltar às vezes um troco para deitar na salva de Nossa Senhora do Rosário, a Titi estabelecia-me uma mesada de três moedas. Abracei com calor o padre Casimiro. E desejei saber se a amorável intenção da Titi era que eu não tivesse outra ocupação, além de cavalgar por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora. Olhe, Teodorico, eu parece-me que a Titi não quer que você tenha outro mister, senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai passá-la boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e diga-lhe uma cousinha mimosa.
Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarca São José, a Titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia, com um xale de Tonquim pelos ombros. Titi, murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer... Está bom, vai com Deus. Então, devotamente, beijei-lhe a franja do xale. A Titi gostou. Eu fui com Deus. Começou daí, farta e regalada, a minha existência de sobrinho da senhora Patrocínio das Neves. As oito horas, pontualmente, vestido de preto, ia com a Titi à Igreja de Santana, ouvir a missa do padre Pinheiro. Depois do almoço, tendo pedido licença à Titi, e rezadas no oratório três Gloria Patri contra as tentações, saía a cavalo, de calça clara. Quase sempre a Titi me dava alguma incumbência beata: passar em São Domingos, e dizer a oração pelos três santos mártires do Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desagravo pelo Sagrado Coração de Jesus...
E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos recados, que ela mandava à casa do Senhor. Mas era este o momento desagradável do meu dia: às vezes, ao sair, sorrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscípulo republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de procissão, chasqueando o Senhor da Cana-Verde. Oh, Raposão! Pois tu agora... Eu negava, vexado: ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual! Entrei aqui por causa de uma rapariga... Adeus, tenho a égua à espera. Montava, e de luva preta, a perna bem colada à sela, um botãozinho de camélia no peito, ia caracolando, em ócio e luxo, até ao Largo do Loreto. Outras vezes deixava a égua no Arco do Bandeira, e gozava uma manhã regalada no bilhar do Montanha. Antes do jantar, em chinelas, no oratório com a Titi, eu fazia a jaculatória a São José, aio de Jesus, custódio de Maria e amorosíssimo patriarca. À mesa, adornada apenas por compoteiras de doce de calda em torno de uma travessa de aletria, eu contava à Titi o meu passeio, as igrejas em que me deleitara, e quais os altares alumiados. A Vicência escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas janelas, onde um retrato do nosso santo padre Pio IX enchia a tira de parede verde, tendo por baixo, pendente de um cordão, um velho óculo de alcance, relíquia do comendador G. Godinho. Depois do café a Titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado, na sombra do lenço roxo». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT