domingo, 1 de julho de 2018

Zorro. Isabel Allende. «… dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos, como chamavam aos índios convertidos, pudessem contar as peles, as velas e as vacas…»

jdact

O começo da lenda
Califórnia. 1790-1810
«Comecemos pelo princípio, por um acontecimento sem o qual Diego La Vega não teria nascido. Sucedeu na Alta Califórnia, na Missão San Gabriel, no ano de Nosso Senhor de 1790. Naquele tempo quem dirigia a missão era o padre Mendoza, um franciscano com umas costas de lenhador, mais novo de aspecto que os seus quarenta anos bem vividos, enérgico e mandão, para quem a maior dificuldade do seu ministério era imitar a humildade e doçura de São Francisco de Assis. Na Califórnia havia vários outros religiosos em vinte e três missões, encarregados de propagar a doutrina de Cristo entre vários milhares de gentios das tribos Chumash, Shoshone e outras, que nem sempre se prestavam de bom grado a recebê-la. Os nativos da costa da Califórnia tinham uma rede de trocas e comércio que funcionava havia milhares de anos. O seu ambiente era muito rico em recursos naturais e as tribos desenvolviam diferentes especialidades. Os Espanhóis estavam impressionados com a economia Chumash, cuja complexidade comparavam com a da China. Os índios usavam conchas como moeda e organizavam regularmente feiras, onde, além do intercâmbio de bens, se ajustavam os casamentos.
Os índios ficavam confundidos com o mistério do homem torturado numa cruz que os brancos adoravam, e não compreendiam a vantagem de sofrer neste mundo para gozar de um hipotético bem-estar noutro. No paraíso cristão podiam instalar-se numa nuvem e tocar harpa com os anjos, mas na realidade a maioria deles preferia, depois da morte, caçar ursos com os antepassados nas terras do Grande Espírito. Tão-pouco compreendiam que os estrangeiros espetassem uma bandeira no solo, marcassem linhas imaginárias, ou declarassem propriedade sua e se ofendessem se alguém entrasse perseguindo um veado. A ideia de possuir a terra era para eles tão inverosímil como a de dividir o mar. Quando chegou ao padre Mendoza notícia de que várias tribos se tinham sublevado, comandadas por um guerreiro com cabeça de lobo, este elevou as suas preces pelas vítimas, mas não se preocupou demasiado, porque estava certo de que San Gabriel se encontrava a salvo. Pertencer à sua missão era um privilégio, como demonstravam as famílias indígenas que acorriam a solicitar a sua protecção a troco do baptismo e de bom grado ficavam sob o seu tecto; nunca tivera de empregar militares para recrutar futuros conversos. Atribuiu a recente insurreição, a primeira que ocorria na Alta Califórnia, aos abusos da soldadesca espanhola e à severidade dos seus irmãos missionários. As tribos, divididas em pequenos grupos, tinham costumes diversos e comunicavam entre si por meio de um sistema de sinais; nunca haviam chegado a acordo para coisa nenhuma, excepto para o comércio, e nunca certamente para a guerra.
Segundo ele, aquelas pobres gentes eram inocentes cordeiros de Deus, que pecavam por ignorância e não por vício; deviam existir razões ponderosas para que se levantassem contra os colonizadores. O missionário trabalhava sem descanso, lado a lado com os índios, nos campos, no curtimento de peles, na moagem do milho. De tarde, quando os outros descansavam, ele tratava feridas de acidentes menores ou arrancava algum dente podre. Além disso, dava lições de catecismo e de aritmética, para que os neófitos, como chamavam aos índios convertidos, pudessem contar as peles, as velas e as vacas, mas não de leitura ou escrita, conhecimentos sem aplicação prática naquele lugar. À noite fazia vinho, tratava das contas, escrevia nos seus cadernos e rezava. Ao amanhecer tocava o sino para chamar a sua congregação à missa e, depois do ofício, supervisionava o pequeno-almoço com olhar atento, para que ninguém ficasse sem comer. Por tudo isso, e não por excesso de confiança em si próprio ou vaidade, estava convencido de que as tribos em pé de guerra não atacariam a sua missão. Não obstante, como as más notícias continuassem a chegar semana após semana, acabou por lhes dar atenção. Mandou um par de homens de toda a confiança averiguar o que se estava a passar no resto da região; estes não tardaram a localizar os índios em guerra e a apurar os pormenores, porque foram recebidos como compadres pelos próprios sujeitos que iam espiar. Regressaram para contar ao missionário que um herói, surgido das profundezas do bosque e possuído pelo espírito de um lobo, tinha conseguido juntar várias tribos para expulsarem os Espanhóis das terras dos seus antepassados, onde sempre tinham caçado sem autorização. Os índios não possuíam uma estratégia clara; limitavam-se a assaltar as missões e as povoações no impulso do momento, incendiavam tudo quanto encontravam à sua passagem e seguidamente retiravam-se tão depressa como haviam chegado. Acrescentaram os homens do padre Mendoza que o chefe Lobo Cinzento tinha San Gabriel na mira, não por rancor particular contra o missionário, ao qual nada se podia censurar, mas sim porque lhes ficava em caminho. Em vista disso, o sacerdote teve de tomar medidas. Não estava disposto a perder o fruto do seu trabalho de anos e ainda menos a permitir que lhe arrebatassem os seus índios, que longe da sua tutela sucumbiriam ao pecado e voltariam a viver como selvagens. Escreveu uma mensagem ao capitão Alejandro La Vega pedindo-lhe imediato socorro. Receava o pior, dizia, porque os insurrectos se encontravam muito perto, com intenções de atacar a qualquer momento, e ele não se poderia defender sem reforços militares adequados. Mandou duas missivas idênticas ao forte de San Diego por cavaleiros expeditos, que usaram diferentes percursos, de modo que, se um fosse interceptado, o outro alcançaria o seu propósito». In Isabel Allende, Zorro, O Começo da Lenda, Editorial Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-006-1.

Cortesia da EInapa/JDACT