quarta-feira, 11 de julho de 2018

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. «… a mesma separação da amada, o mesmo sofrimento da ausência, a mesma intromissão dos fados inimigos»

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«(…) Já citámos dois temas comuns às duas: o tema Amor e Riqueza e o tema da fidelidade até à morte, que se reflecte no Crisfal com a imagem da sombra. Lembraremos ainda que ambas as composições abrem pela descrição do sofrimento da ausência; que certos versos da Écloga se explicam por outros da Carta; assim, este pensamento da Carta:

que a vida é de uma hora,
este bem será eterno (a ser verdadeira a lição de 1619)

foi erguido pelo autor da Écloga às alturas da poesia e serviu de ponto de apoio para um belo voo sobre os mistérios de além-túmulo:

o amor a alma acompanha.

Mais do que isso, o drama completo do Crisfal esboça-se na Carta, onde adivinhamos o debate da heroína entre os conselhos da parentela e o seu próprio sentimento e onde podemos prever a vitória final deste último, como a prevê o próprio autor ao afirmar a sua confiança na fidelidade dela. Ainda mais: o sonho do Crisfal com a cena das lágrimas pode-o ter sugerido este passo da Carta:

[….] lembranças tão mortais
traz à minha fantesia,
que basta uma de um dia
para me os meus tirar:
nele vos vi eu chorar
e nele chorei também.

Convertendo a lembrança em sonho e fundindo a cena das lágrimas, passada e por isso sonhada, com a preocupação presente da pressão da parentela e da preocupação do dinheiro, poderia o Poeta ter criado a Écloga partindo da Carta. E isto explicaria o sentido oculto daquelas palavras:

Eu o treladei dali

Perguntará alguém se um poeta tão profundamente subjectivo e tão consumido pela própria tragédia interior, como era Bernardim Ribeiro, teria disposição e feitio para contar mágoas alheias. Eu lembrarei que o dom dos poetas, sobretudo dos poetas profundamente subjectivos, e nós já veremos em que sentido esta palavra se pode aplicar a Bernardim Ribeiro, é precisamente sentir como suas as mágoas alheias, saber captar para o seu mundo interior as vibrações perdidas no espaço. E neste caso particular há a observar que Bernardim poderia ter encontrado na história do Crisfal um caso muito semelhante ao seu: a mesma separação da amada, o mesmo sofrimento da ausência, a mesma intromissão dos fados inimigos. Parece-me isto suficiente. Mas, para tirar as dúvidas a algum leitor mais escrupuloso em pôr os pontos nos ii, 1embrarei ainda os seguintes factos:

a) que o ambiente do Cancioneiro Geral em que viveu o nosso Poeta era extremamente propício aos brinquedos poéticos, ou, por palavras menos simples, ao exercício da poesia como actividade lúdica;
b) que, pelo menos a cantiga ou solau Pensando-vos estou filha e o Romance de Avalor, na Menina e Moça, são composições feitas ad hoc, para ilustrar histórias imaginadas pelo Poeta e, portanto, alheias a ele, objectivas;
c) que a cantiga Não sam casado, Senhora, segundo a hipótese de Carolina Michaëlis, a única com alguma verosimilhança, é um exercício poético de natureza desportiva ou lúdica».

In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT