quarta-feira, 18 de julho de 2018

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Os trabalhos estavam a chegar ao fim e tinham sido içados os últimos cestos de pedras e argamassa destinados a modelar a montanha para lhe dar o aspecto pretendido»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Piankhi apreciava a coragem de Puarma. E este último estava convencido que aquele encontro nada tinha a ver com o acaso. Majestade... Devemos preparar-nos para um conflito? Não... Ou, pelo menos, não sob a forma que imaginas. O inimigo nem sempre ataca onde esperamos. Na minha própria capital, há quem deseje que eu me ocupe menos dos deuses e mais dos seus privilégios. Reúne os teus homens, Puarma, e coloca-os em estado de alerta. O capitão dos archeiros curvou-se perante o seu rei e partiu a correr para Napata, enquanto Piankhi continuava a contemplar a paisagem atormentada da catarata. Da fúria das águas e da eternidade implacável da rocha, o faraó negro absorvia a energia indispensável para cumprir a sua missão. A felicidade... Sim, Piankhi tinha a sorte inestimável de saborear a felicidade. Uma família feliz, um povo que comia o que queria e se alimentava também dos dias tranquilos que se escoavam ao ritmo das festas e dos rituais. E ele, o faraó negro, tinha o dever de preservar essa serenidade.
A pureza do ar tornava perceptível o menor ruído. E Piankhi conhecia bem aquele: o choque regular dos cascos de um burro no carreiro. Um burro que transportava Cabeça-fria, escriba de elite e conselheiro de Piankhi. Um burro que se alegrava por ter um dono leve, dado que Cabeça-fria era um anão de rosto severo e busto admiravelmente proporcionado. O escriba habitualmente não se afastava do seu gabinete, o centro administrativo da capital. Se tinha empreendido aquela viagem, a razão devia ser séria. Até que enfim que vos encontro, Majestade! O que se passa? Um acidente no estaleiro, Majestade. Um acidente grave.
Dominando Napata, a capital do faraó negro, os mil metros da montanha pura, o Gebel Barkal, abrigavam o poder invisível do deus Amon, o Oculto, que estava na origem de toda a criação. Situada quinze quilómetros para jusante da quarta catarata e rodeada de desertos, Napata encontrava-se no entanto no meio de uma planície fértil à qual iam dar diversas pistas de caravanas. Desta forma, os súbditos de Piankhi não tinham falta nem de produtos de primeira necessidade, nem de iguarias requintadas, nem mesmo de artigos de luxo. Mas os caravaneiros não estavam autorizados a instalar-se em Napata, a não ser que mudassem de profissão. Apenas eram admitidos para uma breve estada, o tempo de vender as suas mercadorias e repousar um pouco. Todos sabiam que Piankhi dispunha de imensas riquezas, mas eram reservadas para o embelezamento dos templos e manutenção do bem-estar da população. Os raros casos de corrupção tinham sofrido pesadas penas, indo até à condenação à morte. O faraó negro não tolerava as faltas graves à regra de Maât e muito poucos imprudentes se arriscavam a sofrer a sua cólera.
Montanha isolada em pleno deserto, o Gebel Barkal fascinava Piankhi desde a infância. Quantas horas tinha passado junto das falésias abruptas que dominavam a margem direita do Nilo! Com o correr dos anos, formara-se no seu coração um projecto insensato: fazer falar a montanha pura, talhar o pico isolado, num dos seus ângulos, para fazer dele o símbolo da monarquia faraónica. O empreendimento apresentava-se como perigoso, mas Piankhi entregava-se a ele há dois anos com a colaboração de voluntários. Como o pico estava separado da massa da montanha por uma ravina com a largura de doze metros e a profundidade de sessenta, fora necessário escavar buracos na rocha para enfiar traves e montar um gigantesco andaime com o auxílio de aparelhos de elevação rudimentares mas eficazes.
Seguindo as indicações do faraó mestre-de-obra, os escultores, sentados em estreitas plataformas, tinham talhado o pico do Gebel Barkal De leste, as pessoas julgavam ver um enorme uraeus, a cobra fêmea erguida e adornada com a coroa branca; de oeste, a coroa vermelha e o disco solar. No extremo do cume tinha sido gravada uma inscrição hieroglífica em honra de Amon. Um ourives fixara também um painel coberto de folhas de ouro para reflectir a luz da madrugada e evidenciar de forma deslumbrante, todas as manhãs, o triunfo da luz sobre as trevas. Por baixo do painel, um nicho guardava uma serpente uraeus em ouro. Os trabalhos estavam a chegar ao fim e tinham sido içados os últimos cestos de pedras e argamassa destinados a modelar a montanha para lhe dar o aspecto pretendido. Conta-me o que se passou pediu Piankhi a Cabeça-fria. Um escultor quis contemplar a sua obra de perto e não respeitou as regras de segurança. A meia altura, escorregou numa viga. Queres dizer...? Morreu, Majestade. E o seu assistente não é melhor do que ele: lançando-se de forma estúpida em socorro do patrão, foi dominado pelas vertigens e não pôde fazer um gesto». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT