quarta-feira, 11 de julho de 2018

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. «A carta apresenta vários pensamentos que se encontram na écloga e expressos por modo semelhante. Assim que parece-nos lícito ver na carta…»

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«(…) Temos, pois, que Raul Soares nos demonstrou duas coisas: que no Crisfal se narra uma história que não é a mesma que Bernardim nos conta nas suas Éclogas e na sua novela; que o Crisfal pertence a um género literário diferente do das cinco éclogas do mesmo Bernardim. Para demonstrar que Bernardim Ribeiro não é o autor do Crisfal seria preciso provar a diversidade daquilo que um escritor tem de mais inconfundível e de mais intransmissível, daquilo que, segundo uma frase célebre de Buffon, é a marca do homem: o estilo. E essa ficou por demonstrar. Qual será, portanto, a única conclusão admissível a tirar destes factos? Esta: Bernardim Ribeiro escreveu uma écloga contando a história de um amor que não era o seu e num género literário que, talvez por isso mesmo, não era também o das outras suas éclogas.
Agora note o Leitor: admitida esta explicação, tudo o que no Crisfal nos parece insólito e desusado em relação às Éclogas se explica sem esforço. O aparecimento de motes e cantigas alheias e de versos castelhanos, três ao todo..., porque o próprio género da écloga dramática exigira a caracterização das personagens; a localização geográfica, o amor correspondido, a cena dos beijos, porque tudo isso estava na história que o Poeta recontava; a objectividade, a nitidez, a serenidade, porque, diante de um caso alheio, ele estaria naturalmente num estado de espírito muito diverso daquele com que lamentaria as suas mágoas.
Mas não desenrolei ainda todo o processo aos olhos do Leitor. Já lhe falei naquele donairoso acabamento da Écloga; e vou transcrever as duas estrofes a fim de que o Leitor as releia pesando bem o sentido e a intenção das suas palavras:

Isto que Crisfal dezia,
assi como o contava,
uma ninfa o escrevia
num álemo que ali estava,
que inda então crescia.
Dizem que foi seu intento
de escrevê-lo em tal lugar
pera por tempo se alçar
onde baixo pensamento
lhe não pudesse chegar.
Eu o treladei dali,
donde mais estava escrito
que aqui não escrevi,
porque mal tão infinito
não se lhe pode dar fim.
O que se fez de Crisfal
não o sabe certo ninguém:
muitos por morto o tem,
mas quem vive em tanto mal
nunca vê tamanho bem.

Só um autor que em relação à história que nos conta estivesse na situação de simples narrador poderia ter escrito estes versos. Ele próprio se inculca como tal, gentilmente: eu o treladei dali. Além disso, só com certo esforço de imaginação poderíamos supor o ingénuo e desajeitado autor da Carta a dizer de si próprio: o que se fez de Crisfal / não o sabe certo ninguém / muitos por morto o tem. O que há aqui, com certeza, é uma referência aos zunzuns, aos dizem que em certa sociedade correriam com respeito ao herói da aventura, do mesmo modo que naqueles versos anteriores, onde parece que o autor procura defender o Crisfal da maledicência do mundo: [...] alçar esta história / onde baixo pensamento / não lhe pudesse chegar. O sentido das estrofes citadas é talvez esclarecido por esta observação: o Crisfal parece supor o conhecimento da Carta, porque os temas daquele existem quase todos embrionários nesta. Já o notou Epifânio Dias:

A carta apresenta vários pensamentos que se encontram na écloga e expressos por modo semelhante. Assim que parece-nos lícito ver na carta um como que prelúdio da écloga, tendo o poeta desenvolvido na écloga as ideias que constituem o argumento da carta».

In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT