sexta-feira, 13 de julho de 2018

O Faraó Negro. Christian Jacq. «Se for má, estamos condenados. Não desesperes, rezemos dia e noite à deusa das colheitas. O homem olhou ao longe»

jdact e cortesia de wikipedia

«Quando viu o marido regressar do templo, a esposa do chefe da aldeia forçou-se a acreditar que trazia ao ombro um saco de trigo. Na véspera, o casal de camponeses tinha festejado o aniversário da filhinha, que estava encantada com o presente que recebera: uma boneca de pano que o pai lhe fizera. Com as amigas da sua idade, brincava no meio da estrada que atravessava a Colina dos Pássaros, uma aldeia da província de Heracleopólis, no Médio Egipto. O homem atirou o saco vazio ao chão. Não há mais nada. Os próprios sacerdotes se arriscam a morrer de fome e os deuses não tardarão a regressar ao céu, pois ninguém pensa em respeitar as leis dos nossos antepassados. Mentira, corrupção, egoísmo: eis os nossos novos senhores. Dirige-te ao vizir e depois ao faraó, se for preciso!
Já não há faraó, apenas chefes de clã que se batem entre si e pretendem exercer o poder supremo. O norte do país está sob o jugo dos príncipes líbios que se comprazem na anarquia e nas suas querelas internas. E o faraó negro? Ora, esse! Deixou um exército em Tebas para proteger a cidade santa do deus Amon, onde reina a irmã, a Divina Adoradora, e encerrou-se na sua capital, Napata, nos confins da Núbia, tão longe do Egipto que já o esqueceu há muito tempo! (Os acontecimentos desenrolam-se cerca de 730 a C.) Tenho a certeza que nos ajudará! Desengana-te, é incapaz disso. Embora se afirme rei do Alto e do Baixo Egipto, apenas controla a sua província lá dos confins e o sul do vale do Nilo. Abandona o resto do país à desordem e à confusão. Era necessário preveni-lo que estamos a mergulhar na miséria, que... É inútil afirmou o chefe da aldeia. O faraó negro contenta-se com o seu falso reino. Para ele, nós não existimos. Ainda tenho peixe seco, mas apenas para alguns dias... Vão considerar-me responsável pela fome. Se não encontrar uma solução, morreremos todos. Não me resta mais do que suplicar ao príncipe de Heracleopólis que nos socorra. Mas ele é fiel ao faraó negro! Se também ele me falhar, irei até mais a norte. A mulher agarrou-se ao marido. Os caminhos não são seguros, as milícias líbias prender-te-iam e cortar-te-iam o pescoço! Não, não deves partir. Aqui, na Colina dos Pássaros, estamos em segurança. Os nortistas nunca ousariam aventurar-se tão longe. Então, morramos de fome... Não, pára de receber os impostos, racionemo-nos e partilhemos o que nos resta com as outras aldeias! Assim, aguentar-nos-emos até à cheia.
Se for má, estamos condenados. Não desesperes, rezemos dia e noite à deusa das colheitas. O homem olhou ao longe. Que futuro nos resta? Os tempos felizes desapareceram para sempre e viver tornou-se um fardo. Como podemos acreditar nas promessas dos homens de poder? Só têm como objectivo o enriquecimento pessoal e as suas belas palavras só a eles próprios seduzem. As garotas brincavam com as bonecas, num universo maravilhoso de que só elas possuíam a chave. Ralhavam e tornavam a ralhar, porque as marotas das bonecas desobedeciam constantemente. A camponesa sorriu. Sim, a esperança existia. Existia nos risos das crianças e na sua instintiva recusa da tristeza. O vento do norte levantou-se, arrastando uma nuvem de pó que cobriu o limiar das casas. Com o olhar triste, o chefe da aldeia sentou-se num banco de pedra colocado em frente da parede da sua casa. No instante em que a mulher agarrou numa vassoura, o solo tremeu.
Um ruído surdo, ainda distante, vinha da estrada de Mênfis, a cidade mais populosa do país e o seu principal centro económico. Mênfis ignorava o medíocre reinado do faraó negro e adaptava-se cada dia mais à ocupação líbia. Formando uma roda, as garotinhas explicavam às bonecas que tinham que ser muito obedientes para crescerem e usarem lindos vestidos. Uma nova nuvem de pó subiu até ao céu e o ruído surdo transformou-se num estrépito semelhante ao que seria provocado pela carga de uma manada de touros enfurecidos. A camponesa avançou, olhando para norte, mas ficou encandeada. Os raios do sol reflectiam-se em superfícies metálicas que os transformava numa luz branca que cegava. Carros constatou o chefe da aldeia, saindo do seu torpor. Carros, soldados com capacetes e couraças, escudos, lanças... Vindo do Delta, o exército nortista abatia-se sobre a Colina dos Pássaros». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT