sexta-feira, 6 de julho de 2018

Destroços. Eduardo Lourenço. «Por mais que pese a gregos e troianos não é costume da Igreja colocar entre os seus luminares os suspeitos nas obras ou na Fé»

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O Gibão de Mestre Gil
«(…) Crer coisa diversa não é fazer obra de historiador mas de profeta às avessas e submeter arbitrariamente o que foi, e de que nos ficaram testemunhos irrefragáveis, a utopismos respeitáveis na sua ordem, mas inadequados à verdade de que desejariam reclamar-se. No fundo, trata-se sempre de idêntico fenómeno: o de homens que não podem já assumir nem a forma nem o conteúdo da religiosidade medieval, que é, no fundo, a mesma de hoje, mas que a transfiguram para uso próprio, ou por ignorância, ou por estesia ou por secreta necessidade religiosa deles mesmos mal conhecida. O franciscanismo é um fenómeno histórico extremamente complexo, tocado em suas manifestações exteriores pela presença de um espírito realmente hostil à estruturação jurídica e social que a Igreja acabou por assumir. O fogo que consome S. Francisco e o leva nu diante do Bispo não está longe de Montségur. O génio de S. Francisco foi de o tomar nas suas mãos sem o destruir e de o depor aos pés dessa mesma Igreja que precisava dele para ser o que idealmente queria ser e historicamente não era. Estratégia divina ou astúcia da História como diria Hegel, cada qual interprete o fenómeno como puder e souber, mas o facto do franciscanismo, aquilo pelo qual ele pôde ser o que foi, reside nessa conversão, nessa reversão do que ameaçava a visão católica do mundo em seus fundamentos, em perfeita e sublimada ortodoxia. De certo, a Igreja não será daí em diante a mesma mas, falando com propriedade, ela não é jamais a mesma em sentido comum. Mas isso não é razão para atribuir aos gestos que vêm dela, como serão daí em diante a acção e os actos militantes do franciscanismo, o pimento suspeito da heterodoxia ou o mais suspeito ainda de uma contradição suplementar e insolúvel, que seria invisível para a mesma Igreja. Estranha ideia se fazem esses críticos da ortodoxia. Sem ela não se precipitariam com uma alegria não dissimulada sobre o mínimo sintoma, a mínima expressão que por humanamente aceitável, racional, critica, já se lhe afigura um desmentido, um desvio, uma negação dessa ortodoxia a respeito da qual eles se inventaram uma imagem caricatural.
Admoesta Gil Vicente os frades ignaros de Santarém? Audácia heterodoxa, inaudito atrevimento. podiam empilhar-se toneladas de páginas contra a ignorância fradesca, os seus vícios, a sua concussão, todas ou quase todas escritas por outros frades, naturalmente. As audácias de Mestre Gil são uma pálida palinódia para quem tem uma vaga ideia do que podia escrever um Poggio no De Hypocrisia. E Poggio foi secretário apostólico de oito papas! Quanto à concepção do Deus como ordem da Natureza, que mais ortodoxa concepção? De quem teria a Natureza a sua ordem, peso e medida de augustiniana invocação? Que imagem de tirano aberrante ou demiurgo impotente tem A. José Saraiva do Deus segundo Santo Agostinho e mais explicitamente ainda, de São Tomás, um e outro por Mestre Gil citados com a reverência natural devida aos pilares da ortodoxia? A muito sensata, razoável consideração de Mestre Gil acerca do milagre e sua natureza de excepção é o lugar comum da sabedoria cristã. Que ele tenha de o invocar diante de frades só prova que estes, por ignorância crassa ou mais certamente por paixão que nada tem a ver com a boa doutrina, se desentendiam de tão comum sabedoria. Daí até ver em tão inocente e fiel concepção o halo panteísta de uma Natureza como ordem de Deus ou o mesmo Deus sive Natura há um abismo que nem a história, nem o texto, nem o contexto, nem a mais ínfima verosimilhança, podem autorizar.
Também não a a:utotizatra a referência a Raimundo Lúlio. Não sei se a hipótese de um conhecimento ou da influência de Raimundo Lúlio sobre Gil Vicente é original de A. J. Saraiva. A hipótese nada tem de inverosímil e certo vocabulário, embora não seja prova segura, torna aceitável esse conhecimento. Raimundo Lúlio teve uma voga imensa na Península e entre nós. A Biblioteca de Alcobaça, a leitura dos estudos do padre Mário Martins com evidência o atestam. O que é mais difícil de demonstrar, uma vez mais, é a infidelidade do irrequieto e místico franciscano de Maiorca à ortodoxia. É exacto que algumas passagens das suas obras deram lugar a reparos, que foi alvo de um processo que melhor conviria chamar maquinação, mas de tudo isso saiu o mártir de Marrocos ilibado. Sem este exame não teria o lírico do Desconor sido aceite entre o Beatos. Por mais que pese a gregos e troianos não é costume da Igreja colocar entre os seus luminares os suspeitos nas obras ou na Fé». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, Publicações, 2004, ISBN 972-662-945-4.

Cortesia de GradivaP/JDACT