quinta-feira, 5 de julho de 2018

A Relíquia. Eça de Queirós. «Cala-te, alma perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a nudez forte da verdade. O manto diáfano da fantasia
«(…) Baixei a cabeça, murmurei: e ainda nós não padecemos bastante... Tem a Titi razão. Que se não metesse com saias! Ela ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto, fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda, regeladas e ameaçadoras, as palavras da Titi, para quem os homens acabavam quando se metiam com saias. Também eu me metera com saias, em Coimbra, no Terreiro da Erva! Ali, no meu baú, tinha eu documentos do meu pecado, a fotografia da Teresa dos Quinze, uma fita de seda, e uma carta dela, a mais doce, em que me chamava único afecto da sua alma e me pedia dezoito tostões! Eu cozera estas dentro do forro de um colete de pano, receando as incessantes rebuscas da Titi, por entre a minha roupa íntima. Mas lá estavam, no baú de que ela guardava a chave, dentro do colete, fazendo uma dureza de cartão que qualquer dia poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu acabava logo para Titi! Abri devagarinho o baú, descosi o forro, tirei a carta deliciosa da Teresa, a fita que conservara o aroma da sua pele, e a sua fotografia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei tudo, amabilidades e feições; e sacudi desesperadamente para o saguão as cinzas da minha ternura.
Nessa semana não ousei voltar à Rua da Fé. Depois, um dia que chuviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva. Um vizinho, vendo-me espreitar de longe as janelas negras e mortas do casebre, disse-me que o Godinho, coitado, fora para o hospital numa maca. Desci triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepúsculo húmido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente o meu nome de Coimbra, lançado com alegria. Oh, Raposão! Era o Silvério, por alcunha o Rinchão, meu condiscípulo, e companheiro de casa das Pimentas. Estivera passando esse mês no Alentejo, com seu tio, ricaço ilustre, o barão de Alconchel. E agora, de volta, ia ver uma Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre, numa casa cor-de-rosa, com roseirinhas à varanda. Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita, a Adélia... Tu não conheces a Adélia? Então, que diabo, vem ver a Adélia... É um mulherão! Era um domingo, noite de partida da Titi; eu devia recolher religiosamente às oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão falou da brancura dos braços da Adélia; e eu comecei a caminhar ao lado do Rinchão, enfiando as luvas pretas. Munidos de um cartucho de pastéis e de uma garrafa de Madeira, encontrámos a Ernestina a coser um elástico nas suas botinas de duraque. E a Adélia, estendida num sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um cigarro lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos. Só quando o Silvério e a Ernestina correram à cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar à Adélia, corando: então a menina de onde é?
E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era tristonho aquele tempo de chuva. Ela pediu-me outro cigarro, cortesmente, dizendo-me, o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas largas do seu roupão, escorregando, descobriam braços tão brancos e macios, que entre eles a morte mesma deveria ser deleitosa. Fui eu que lhe ofereci o prato, onde a Ernestina colocara os pastéis. Ela quis saber o meu nome. Tinha um sobrinho que também chamava Teodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do seu coração, enrodilhar-se no meu. Por que é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva ali a um canto?, disse, rindo. O brilho picante dos seus dentinhos miúdos fez desabrochar, dentro em mim, uma flor de madrigal. É para não me tirar daqui de ao pé da menina nem um instantinho que seja. Ela fez-me uma cócega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gozo bebi o resto do Madeira que ela deixara no cálice. A Ernestina, poética, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do Rinchão. Então a Adélia, revirando-se languidamente, puxou-me a face, e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até aí abalara o meu ser.
Nesse doce instante, um relógio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o mármore de uma mesa de mogno, de entre dois vasos sem flores, começou a dar dez horas, fanhoso, irónico, pachorrento. Jesus! Era a hora do chá em casa da Titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as vielas escuras e infindáveis que levam ao Campo de Santana! Em casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de balbuciei: Titi... Mas já ela gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos: relaxações em minha casa não admito! Quem quiser viver aqui há-de estar às horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, enquanto eu for viva! E quem não lhe agradar, rua! Sob a rajada estridente da indignação da senhora Patrocínio, padre Pinheiro e o tabelião Justiço tinham dobrado a cabeça, embaçados, o doutor Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu pesado relógio de ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como sacerdote, como procurador, influente e suave. Dona Patrocínio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa... Mas talvez o nosso Teodorico se tivesse demorado um pouco mais no Martinho, a ouvir falar de estudos, de compêndios...
Exclamei amargamente: nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscípulo meu, que ia lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma tia, uma comendadeira... Estivermos à espera, a passear no pátio... A irmã vai casar, ele andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ela está... Eu morto por me safar, mas com cerimónia do rapaz, que sobrinho do barão de Alconchel... E ele zás, zás, a falar da irmã, e do namoro, e das cartas... A tia Patrocínio uivou de furor. Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa para o pátio de uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão…» In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.

Cortesia de ELBrasil/JDACT