quinta-feira, 12 de julho de 2018

As Noivas do Sultão. Raquel Ochoa. «Frei João evitou julgamentos precipitados, pobre homem, pensou, num país desconhecido, a passar fome, a resolver um assunto de Estado…»

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13 de Julho de 1793
«(…) Sentiu fome enquanto tentava lobrigar na escuridão a zona da saída e pensou no que podia sonhar para o almoço no mosteiro. Quando cismou que estava a olhar para os olhos de alguém, estarrecidos nos seus, crentes e ansiosos, já essa pessoa os retirara e fugia. Sentiu-se percorrer por um arrepio, porque observado. Ainda descortinou um véu a roçar numa cortina, mas logo surgiu o eunuco marroquino, que o acompanhou à saída. Ao ver a luz do dia e o calor do Sol cravando a ardência nas suas mãos descobertas e no rosto, sacudiu ao de leve os ombros, como para se libertar daquele leve mofo de baú da nau visitada.
Frei João evitou julgamentos precipitados, pobre homem, pensou, num país desconhecido, a passar fome, a resolver um assunto de Estado, com a tamanha responsabilidade que trazia às costas, seguramente não o podia interpretar mal. Pareceu-lhe estranho, no entanto, estar tanta gente naquele barco e só se ter cruzado com um criado, o arrais e alguém de raspão. Mas isso não era da sua conta. Enquanto subia ao coche e se deslocava ao encontro de Sua Excelência, de imediato, como lhe fora incumbido, lembrou-se de quando nem contava dezasseis anos e partira para a Europa, munido de cartas de recomendação para algumas casas de comércio francesas. Os vendavais acompanharam aquele barco como fanáticos cães de guarda. Porque as suas primeiras viagens foram um martírio, em caso algum lhe foram propícias, adquiriu o enjoo de viajar para o resto da vida. Malgrado ser também a fonte do seu sustento. Os perigos foram tantos que não se lhe podiam chamar navegação, apenas se lançavam de porto em porto) sempre atingindo terra firme de modo quase trágico, in extremis, já depois de rezadas todas as orações e sendo o fervor com que o faziam a última esperança. A sua viagem significava uma epopeia pessoal, mas há que estender o longo mapa do Mediterrâneo, menos pacífico do que pode parecer à partida, para a ver na plenitude. Andou de arribação em arribação: da velha Damasco, partiu rumo à Alexandria, onde chegou sem problemas. Dali, alcançou Creta, mas na viagem para Tripoli esteve a pique de naufragar. Também antes de atingir Carania, na ilha da Sicília. A viagem até à Córsega foi turbulenta, mas França finalmente estava à vista, onde atracou em Marselha. Infelizmente não conseguiu abrigo em nenhuma das casas para as quais fora recomendado e prosseguiu para Cartagena, em Espanha, onde teve o mesmo destino. Em Granada e Cádis, também a boa sorte não lhe sorriu, e foi já nas temperaturas e amplitudes do Atlântico que encontrou Lisboa.
Acolheu-o em 1750, e ali resolveu permanecer, mal podendo suspeitar que daí a algum tempo a terra se assemelharia à pior das tempestades em mar alto. Mal sabendo o que ainda teria de lutar durante esses próximos anos, pois chegara a um local movimentado, é certo, mas apenas confiando na intervenção de Deus, porque não conhecia ninguém que o pudesse auxiliar e sem qualquer recurso económico além de um punhado de moedas, de uma mala com livros e umas poucas vestimentas. De qualquer modo, tudo lhe parecera melhor naquela imensa manhã em que conheceu o Tejo, um rio que se abria ao mundo, ao mar e abria a cidade, que lhe parecia pequena e bela. Estava cansado de quase naufragar. Quase naufragar não é naufragar, mas é imaginar com todas as forças os ossos molhados e as carnes condoídas a serem engolidas pelas águas. Não naufragar, naufragando, era como ele se referia a essa experiência». In Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN 978-989-876-008-1.

Cortesia de EParsifal/JDACT