terça-feira, 17 de julho de 2018

O Erotismo. Georges Bataille. «As imagens eróticas, ou religiosas, suscitam essencialmente nuns os comportamentos do interdito, em ou mis, comportamentos contrários»

jdact e wikipedia

«(…) Assim, a minha pesquisa, que é fundada essencialmente pela experiência interior, difere na sua origem do trabalho do historiador das religiões, do etnógrafo ou do sociólogo. Sem dúvida, colocou-se a questão de saber se era possível para estes últimos se dirigir através dos dados que eles elaboravam, independentemente de uma experiência interior que eles tinham, de um lado, em comum com os seus contemporâneos, e que, de outro, era também até certo ponto a sua experiência pessoal modificada por um combate com o mundo que fazia o objecto de seus estudos. Mas, no caso deles, podemos quase adiantar em princípio que: quanto menor o papel da experiência (quanto mais ela é discreta), maior é a autenticidade de seu trabalho. Não estou dizendo que quanto menor sua experiência, menor o seu papel. Estou, com efeito, convencido da vantagem, para um historiador, de ter uma experiência profunda, e se ele a tem, visto que ele a tem, o melhor é que ele se esforce para esquecê-la, e aborde os factos de fora. Ele não pode esquecê-la completamente, não pode reduzir inteiramente o conhecimento dos factos ao que lhe é dado de fora, e isto é melhor, mas o ideal é que essa experiência haja apesar dele, na medida em que essa fonte do conhecimento é irredutível, na medida em que falar de religião sem referência interior à nossa experiência levaria a trabalhos sem vida, acumulando a matéria inerte, dada numa desordem ininteligível. Em contrapartida, se eu encaro pessoalmente os factos à luz da minha experiência, sei o que abandono, abandonando a objectividade da ciência. Primeiramente, eu o disse, não posso me proibir arbitrariamente o conhecimento que me dá o método impessoal: a minha experiência supõe sempre o conhecimento dos objectos que ela põe em jogo (são, no erotismo, pelo menos, os corpos; na religião, as formas estabilizadas, sem as quais a prática religiosa comum não saberia ser). Esses corpos não nos são dados senão na perspectiva em que historicamente adquiriram o seu sentido (seu valor erótico). Não podemos separar a nossa experiência dessas formas objectivas e de seus aspectos vistos de fora, nem do seu aparecimento histórico. No plano do erotismo, as modificações do próprio corpo, que respondem aos movimentos vivos que nos sublevam interiormente, estão elas próprias ligadas aos aspectos sedutores e surpreendentes dos corpos sexuados.
Esses dados precisos, que nos vêm de todos os lados, podem não só se opor à experiência interior que lhes responde, mas também a ajudam a sair do fortuito que é típico do indivíduo. Mesmo estando associada à objectividade do mundo real, a experiência introduz fatalmente o arbitrário e, se não tivesse o carácter universal do objecto para o qual está voltada, não poderíamos falar dela. Da mesma forma, sem experiência, não poderíamos falar nem de erotismo, nem de religião.

As condições de uma experiência interior impessoal: a experiência contraditória do interdito e da transgressão
Seja como for, é necessário opor claramente o estudo que se estende o menos possível no sentido da experiência ao que aí avança resolutamente. É preciso que se diga ainda que este ficaria condenado à gratuidade que nos é familiar, se aquele não tivesse sido feito em primeiro lugar. Essa condição que hoje nos parece imprescindível é de data bem recente. Em se tratando de erotismo (ou geralmente de religião), a sua experiência interior lúcida era impossível num tempo em que não aparecia às claras o jogo de balança do interdito e da transgressão que ordena a possibilidade de um e de outro. Não basta saber que existe esse jogo. O conhecimento do erotismo, ou da religião, exige uma experiência pessoal, igual e contraditória, do interdito e da transgressão. Essa dupla experiência é rara. As imagens eróticas, ou religiosas, suscitam essencialmente nuns os comportamentos do interdito, em ou mis, comportamentos contrários. Os primeiros são tradicionais. Os segundos são comuns, pelo menos sob a forma de uma pretensa volta à natureza, à qual se opunha o interdito. Mas a transgressão difere da volta à natureza: ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí esconde-se o suporte do erotismo e se encontra, ao mesmo tempo , o suporte das religiões. Eu anteciparia o desenvolvimento do meu estudo se me estendesse inicialmente sobre a profunda cumplicidade da lei e da sua violação. Mas se é verdade que a desconfiança (o movimento incessante da dúvida) é necessária a quem se esforça por descrever a experiência de que estou falando, ela deve particularmente satisfazer às exigências que posso desde já formular». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT