terça-feira, 3 de julho de 2018

Pirâmide. Tom Martin. «Não quero ouvir as suas mentiras. Já passou pela sua cabeça que o passado e o futuro são propriedade particular e não lhe pertencem, professor Kent?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Lá do alto, respirando o ar rarefeito dos Andes, o professor Kent contemplava pela última vez a beleza das antigas ruínas de Machu Picchu, que ficavam a 9 mil metros de altitude. Fazia apenas dez minutos que ele dormira profundamente na cama confortável do Hotel Ruínas, próximo ao mundialmente famoso património histórico da Unesco, quando, de repente, sem qualquer cerimónia, fora arrancado do sono por dois estranhos. Antes que conseguisse gritar por socorro, amordaçaram-no e o arrastaram para fora da cama. Sem dizer uma única palavra, conduziram-no à força e descalço pelo corredor, passando por uma saída de incêndio, que acabou por levá-los à rua, onde o frio da noite era glacial. Então eles finalmente vieram atrás de mim depois de todos esses anos. Era uma afirmação terrível. Nos últimos meses, começara a duvidar da própria sanidade, mas aquele rapto nocturno lhe provava que as descobertas que fizera eram tão importantes quanto pensava... Durante muito tempo, suspeitara de que, se continuasse a trabalhar naquelas descobertas, acabaria despertando as forças do mal. Cada uma que fazia o deixava cada vez mais tentado a pôr um ponto final na sua permanência neste planeta. Para onde me vão levar? O ar congelante da noite arrancava-lhe o calor do corpo trémulo, o professor Kent tropeçou enquanto era arrastado pelos braços por um caminho estreito e íngreme, em direcção ao interior da região montanhosa. Ao lado daquele facínora corpulento que o empurrava ladeira acima na escuridão, Kent tinha um aspecto deplorável. A barba branca e o cabelo ralo emaranhavam-se com o suor, e o rosto pálido era quase o de um fantasma. Entretanto, mesmo passando por aquilo, a visão dos arredores era consoladora. Iluminada apenas pela lua, a paisagem irradiava uma beleza intensamente sagrada. Chegaram a um planalto, e o mais baixo dos raptores, que se arrastara ao longo do caminho, virou-se, tirou uma pequena caixa do bolso do casaco e abriu-a. No meio da escuridão, o professor Kent não conseguia ver o que havia dentro dela. O bandido mais corpulento, que prendia Kent com uma algema, de repente forçou o homem apavorado a ajoelhar-se. Tomado de pânico, o professor Kent começou a relutar, mas o homem gigantesco empurrou-o com tanta força que ele acabou deitado com o rosto no mato, esticado no chão. Pouco tempo depois sentiu a mão violenta de alguém arrancar-lhe a mordaça.
Quando viu o outro raptor agachado ao seu lado, segurando uma seringa, Kent começou a gritar. Lentamente, muito lentamente, ao que parecia, o homem elevou a seringa à altura do seu rosto. À luz da lua, via-se a gotícula de um líquido semelhante a mercúrio brilhando na ponta do instrumento. Em seguida, o homem mais baixo disse com voz sibilante no ouvido do professor: quer acrescentar mais alguma coisa ao seu rol de mentiras, velhote? Tinha sotaque estrangeiro, embora não fosse possível dizer a procedência. O professor Kent ergueu o pescoço o mais que pôde, até que, com o canto do olho, conseguiu ver o rosto de quem o interrogava. Com grande esforço, proferiu, em tom áspero, uma pergunta. Se o que digo são mentiras, então por que vieram atrás de mim? O homem sinistro riu com escárnio. Então, inclinou-se para a frente e roçou a ponta da seringa no pescoço do professor. Kent mal sentiu o arranhão, mas sabia que era o suficiente; logo depois, os seus pulmões começaram a comprimir-se. Ao perceber que o veneno lhe penetrava as veias, subitamente sentiu-se livre de um tremendo fardo. Agora, tudo o que queria era que o deixassem morrer em paz; entretanto, o seu algoz continuava com as zombarias. O professor Kent, é um demónio. E os demónios devem ser mandados de volta ao inferno, que é o lugar deles. Já chega!, guinchou o homenzinho. O cúmplice empurrava a cabeça do professor em direcção ao mato. Kent sentia que estava às portas da morte. Não quero ouvir as suas mentiras. Já passou pela sua cabeça que o passado e o futuro são propriedade particular e não lhe pertencem, professor Kent? Eles pertencem a pessoas mais importantes, havia ódio na voz do carrasco. Achou que era mais esperto que nós? Passou pela sua cabeça que algum dia poderia revelar o que descobriu? Enquanto falava, algo brilhou na mão do carrasco. Era uma lâmina de barbear. O que ele está fazendo?, pensou o professor, voltando-se para o homem com um olhar cansado. Ele já me condenou à morte com o veneno. O homenzinho continuou a falar, com a voz destilando sarcasmo. Somos generosos. Acreditamos que, tal como Sócrates, o filósofo grego, a quem deram a oportunidade de decidir o seu próprio destino, também deveria merecer a mesma prerrogativa... Não lhe propomos uma morte terrível. Isso poderia despertar curiosidade, um interesse repentino nas aplicações desconhecidas das suas assim chamadas teorias. Um suicídio é bem menos apelativo que um assassinato, não acha? Dito isto, o professor Kent sentiu que a mão do gigante o soltava. Por uma questão de instinto, tentou mover-se, mas o seu corpo não respondeu ao impulso, estava paralisado». In Tom Martin, Pirâmide, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-586-6».

Cortesia de PdomQuixote/JDACT