terça-feira, 3 de julho de 2018

O Júri. John Grisham. «Por acaso. Nicholas Easter era o subgerente que se encontrava mais próximo e, delicadamente, pediu à moça para apagar o cigarro»

Cortesia de wikipedia

«O rosto de Nicholas Easter estava parcialmente escondido por um mostruário cheio de elegantes telefones sem fios e não olhava diretamente para a câmara oculta, mas um pouco mais para a esquerda, talvez para um cliente, ou para o balcão, onde um grupo de jovens apreciava as novidades de jogos eletrônicos importados da Ásia. Embora tirada a uma distância de quarenta metros, por um homem que tinha de se desviar constantemente dos transeuntes no passeio, a fotografia era clara e mostrava um rosto simpático, bem barbeado, com traços fortes e uma beleza quase infantil. Easter tinha vinte e sete anos: sobre isso não havia dúvida. Não usava óculos, piercing no nariz, nem sequer um penteado estranho. Nada indicava que fosse um daqueles fanáticos por computadores que trabalham numa loja de informática a troco de um salário miserável. Na ficha a seu respeito apenas constava que estava ali há quatro meses e que era estudante, embora não tivessem encontrado nenhum registro de matrícula em qualquer uma das escolas situadas num raio de quatrocentos quilômetros. Sobre este assunto, tinham certeza de que mentia.
Tinha de ser mentira. O seu serviço de espionagem e informações era óptimo e, se o rapaz fosse realmente estudante, já teria sido descoberto onde, há quanto tempo, em que área, se tinha boas ou más notas. Easter trabalhava num centro comercial numa Computer Hut, uma loja de informática. Nada mais, nada menos. Talvez tivesse intenção de matricular-se. Talvez tivesse sido obrigado a abandonar os estudos mas continuasse gostando de se dizer estudante. Provavelmente essa ideia fazia com que se sentisse melhor, dando-lhe uma espécie de objectivo na vida; além de que soava bem. Easter não era estudante de nada, nem naquele preciso momento nem num passado recente. E, assim sendo, seria possível confiar nele? A questão fora debatida na sala nas duas vezes em que chegaram ao nome de Easter incluído na lista principal de potenciais jurados e viram o seu rosto projectado na tela. Tinham quase decidido que se tratava de uma mentira sem importância. Não fumava. A loja tinha regras estritas a esse respeito, mas Easter foi visto (mas não fotografado) comendo um taco (taco de origem mexicana) no Food Garden com uma colega de trabalho que fumou dois cigarros enquanto bebia uma limonada.
Aparentemente a fumaça do cigarro não o incomodava. Pelo menos não era antitabagista fanático. Na fotografia aparecia um rosto magro, bronzeado pelo sol, sorrindo levemente com os lábios fechados. Sob o casaco vermelho da farda da loja usava uma camisa branca, com colarinho sem botão, e uma discreta gravata de riscas. Parecia limpo, em boa forma, e o homem que tirou as fotografias chegou a falar com ele, fingindo que estava à procura de uma peça obsoleta de computador. Disse que tinha um discurso articulado, que era atencioso, conhecia bem o ramo, em resumo, que era um jovem simpático. No seu crachá lia-se subgerente, mas foram vistos na loja outros dois rapazes com o mesmo título nos crachás. No dia seguinte ao da foto, uma jovem atraente, vestida de jeans, entrou na loja e, enquanto examinava material de software, acendeu um cigarro. Por acaso. Nicholas Easter era o subgerente que se encontrava mais próximo e, delicadamente, pediu à moça para apagar o cigarro. Ela parecia frustrada. Até mesmo insultada e tentou provocá-lo. Nicholas manteve uma atitude diplomática, explicando que era estritamente proibido fumar na loja. Podia fumar em qualquer outro lugar, menos ali O tabaco incomoda-o?, dando uma passa. Francamente, não, respondeu. Mas incomoda o dono da loja. E voltou a sugerir-lhe que apagasse o cigarro.
A moça disse que queria comprar um rádio digital e pediu-lhe que arranjasse um cinzeiro. Nicholas tirou de baixo do balcão uma garrafa vazia de refrigerante, tirou-lhe o cigarro da mão e apagou-o. Durante vinte minutos, enquanto escolhia o modelo de rádio que ia comprar, falaram sobre rádios. A moça tinha uma atitude abertamente provocante e Nicholas entrou no jogo. Depois de pagar o rádio, a moça deu-lhe um papel com o número de telefone. Nicholas prometeu telefonar-lhe. O episódio durou vinte e quatro minutos e foi registado por um gravador escondido na carteira dela. A gravação foi ouvida nas duas vezes em que o rosto de Nicholas foi projectado na parede e estudado pelos advogados e assessores. O relatório da jovem sobre o incidente estava arquivado, seis páginas dactilografadas sobre tudo o que tinha observado, desde os sapatos (um Nike velho), ao hálito (goma de mascar de canela), ao vocabulário (colegial) e à forma como tinha agarrado o cigarro. Na sua opinião, e era entendida na matéria, Nicholas nunca tinha fumado. Ouviram a agradável voz de Nicholas, apreciaram o seu profissionalismo como vendedor, o encanto da sua conversa e gostaram dele. Era inteligente e não odiava tabaco». In John Grisham, O Júri, 1996, Editora Rocco, tradução de Aulyde Amaral, 2001, ISBN 972-759-293-7.

Cortesia de ERocco/JDACT