sexta-feira, 13 de julho de 2018

O Labirinto da Saudade. Eduardo Lourenço. «Não vivíamos num país real, mas numa Disneylandia qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas»

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«(…) O nacionalismo orgânico do antigo regime favoreceu a objectiva desnacionalização de milhares de portugueses. Em compensação, teria contribuído para colmatar, melhor que a ideologia patriótica do liberalismo, o abismo persistente entre a nossa autêntica realidade e a imagem hipertrofiada com que sempre temos vivido a nossa vida imaginária? Houve no salazarismo concreto (e na sua ideologia expressa nos Discursos do universitário assaz racionalista que foi Salazar, uma tentativa para adaptar o país à sua natural e evidente modéstia. Todavia a glosa do relativo sucesso dessa tentativa é que não foi nada modesta e breve redundou na fabricação sistemática e cara de uma lusitanidade exemplar,cobrindo o presente e o passado escolhido em função da sua mitologia arcaica e reaccionária que aos poucos substituiu a imagem mais ou menos adaptada ao País real dos começos do Estado Novo por uma ficção ideológica, sociológica e cultural mais irrealista ainda que a proposta pela ideologia republicana, por ser ficção oficial, imagem sem controlo nemcontradição possível de um país sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com um desenvolvimento harmonioso da sociedade. Esse optimismo de encomenda teve nas famigeradas notas do dia o seu evangelho radiofónico. Não vivíamos num país real, mas numa Disneylandia qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas. O sistema chegou a uma tal perfeição na matéria que não parecia possível contrapor uma outra imagem de nós mesmos àquela que o regime tão impune mas tão habilmente propunha semque essa imagem-curta (não apenas ideológica, mas cultural) aparecesse como uma sacrílega contestação da verdade portuguesa por ele restituída à sua essência e esplendor. Não se percebeu nada do espírito do antigo regime e do seu êxito histórico quando não se vê até que ponto ele foi a mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que precisa dele como de pão para a boca em virtude da distância objectiva que separa a sua mitologia da antiga nação gloriosa da sua diminuida realidade presente. O Estado Novo voltou contra o sistema democrático um patriotismo que nãos oubera traduzir nos factos nenhuma das promessas que o haviam justificado nos finais do século XIX. Sob tão sólida peanha o Estado Novo, mesmo cada dia mais envelhecido, podia durar indefinidamente. A mentira orgânica que a sua impossível consubstanciação orgânica com a Nação, por mais formal que realmente orgânica, representava junto da parte mais politizada do povo português, poder-se-ia ter prolongado, menos pela sua própria capacidade do que pelo vazio quase absoluto da ideologia liberal sobrevivente. E na verdade em face desse obstáculo, balizado com o nome ainda mágico da Democracia, o antigo regime foi capaz durante mais de trinta anos de resistir vitoriosamente. Essa resistência foi-lhe tanto mais fácil quanto era certo que o ferro de lança da Democracia, que na sombra, ou de quatro em quatro anos à luz de um arremedo de dia eleitoral a defendia, era um partido que não possuía desse ideal nem da prática democráticas tradicionais, nenhuma lembrança fervorosa ou projecto digno de crédito. Os fins dos anos 30, começos dos anos 40, veriam em Portugal uma mutação que por confinado ou claro destino deslocou, como até então ideologia alguma o conseguira, o eixo sobre o qual repousaram até aí todas as figuras da relação entre os portugueses e Portugal. Pela primeira vez o sentimento patriótico característico da política moderna sob o signo português era desmascarado, na teoria e na prática, e subordinado a uma concepção revolucionária da História que transfere para a luta de classes o segredo do seu dinamismo, fiando da sua abolição o ajustamento efectivo do indivíduo ao povo a que pertence enquanto sociedade revolucionária pela supressão vitoriosa da classe dominante que até então confundira como seus os interesses colectivos». In Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
                                                                                                                           
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