segunda-feira, 16 de julho de 2018

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. «Cristóvão Falcão foi, na verdade, um herói da aventura que lhe atribui o primeiro editor da Menina e Moça; e toda a corte se interessou pela triste sorte do fidalguinho infeliz»

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«(…) E, quanto a datas. algarismos, etc., haverá alguma coisa que impeça Bernardim Ribeiro de ser o autor do Crisfal? Carolina, fiada no famoso documento judicial de 1642, sustentava a impossibilidade cronológica. Mas já vimos, no primeiro parágrafo desta Introdução, o que devemos pensar da valia desse e de outros documentos. É impossível, portanto, argumentar com algarismos; e as razões que tenho estado a expor são bastante poderosas para os dispensar. Que resultado final se obtém de tudo isto? Vou apresentar ao Leitor urna hipótese que enfiará num colar as contas dispersas e desarticuladas que lhe venho apresentando. Cristóvão Falcão foi, na verdade, um herói da aventura que lhe atribui o primeiro editor da Menina e Moça; e toda a corte se interessou pela triste sorte do fidalguinho infeliz, namorado e preso. Bernardim Ribeiro, conhecedor da carta em verso que ele dirigira a Maria e que, possivelmente, correra de mão em mão, escreveu a Écloga pondo em cena o próprio Cristóvão Falcão sob o disfarce transparente do nome de Crisfal, formado das sílabas iniciais do nome dele. A Écloga correu anónima porque Bernardim Ribeiro, por qualquer razão, se não quis assinar como autor dela; e, por um processo naturalíssimo, pois Cristóvão Falcão era o herói da aventura e o autor da Carta, foi atribuída a este pela bisbilhotice palaciana. Daqui facilmente o boato chegaria aos ouvidos dos Usques, que o reproduziram com todas as cautelas, e, por intermédio deles, até nós. Bem sei que é esta uma hipótese como qualquer outra; mas tem sobre a hipótese de Delfim Guimarães e a hipótese tradicional a superioridade, pelo menos, de não ser inverosímil.
E passemos a outra meada.
A novela que conhecemos pelo nome de Menina e Moça aparece separada, na edição de Évora (1557), em duas partes muito diferentes entre si, tanto pelo carácter literário como pelo desenvolvimento do enredo: ao passo que a Primeira Parte é idílica e se desenvolve a partir de um ponto, num movimento contínuo, sem quebras, a Segunda Parte é uma série de histórias de cavalaria, sem unidade de desenvolvimento, contíguas, que se interrompem para dar passagem umas às outras.
Esta diversidade deu origem a uma hipótese segundo a qual a segunda parte da Menina e Moça seria escrita por um continuador com o fito de declarar, isto é, dar acabamento à história começada e evidentemente incompleta. Não seria caso desusado; e a hipótese era fortalecida pelas enormes contradições existentes entre as duas partes. Mas a edição de Ferrara (1554) vem destruir esta hipótese porque dá Bernardim Ribeiro como autor de dezassete capítulos da Segunda Parte; e aceite a autenticidade destes dezassete capítulos, ficamos autorizados a aceitar a de todos os restantes, porque os editores de Ferrara utilizaram um traslado evidentemente incompleto ou truncado. António Salgado Júnior acaba de propor a autenticidade dos sete capítulos que se seguem ao capítulo final da edição de Ferrara, com argumentos que não é fácil rebater». In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT