segunda-feira, 16 de julho de 2018

O Erotismo. Georges Bataille. «Jamais a humanidade pôde procurar o que a religião procura há muito tempo, a não ser num mundo em que a sua busca dependia de causas duvidosas, subordinadas…»

jdact e wikipedia

«(…) Transformam assim aquele que os acolhe naquilo que seria, entre os seus, um homem que soubesse da existência do cálculo, mas se recusasse a corrigir os seus erros de adição, ciência não me cega (uma vez cego, eu não poderia senão responder mal às suas exigências) e, igualmente, a matemática não me incomoda. Admito que me digam dois e dois são cinco?, mas se alguém, visando um fim preciso, faz contas comigo, esqueço a identidade pretendida de cinco e de dois e dois. Ninguém saberia diante de mim colocar o problema religião a partir de soluções gratuitas que o atual espírito de rigor recusa. Não sou um homem de ciência enquanto falo de experiência interior, não de objectos, mas no momento em que falo de objectos, eu o faço como os homens de ciência, com o inevitável rigor.
Direi mesmo que, com frequência, na atitude religiosa, no meio de uma tão grande avidez de respostas precipitadas, religião adquiriu o sentido de facilidade de espírito, e que as minhas palavras iniciais levam leitores desprevenidos a pensar que se trata de aventura intelectual e não da incessante actividade que desloca o espírito para mais adiante, se foi preciso, mas pela via da filosofia e das ciências, em busca de todo o possível que ele pode abrir.
Todo o mundo, seja quem for, reconhecerá que nem a filosofia, nem as ciências podem abordar o problema que a aspiração religiosa colocou. Mas todo o mundo também reconhecerá que, nas condições em vigor, esta aspiração até aqui não pôde traduzir-se não ser por formas adulteradas. Jamais a humanidade pôde procurar o que a religião procura há muito tempo, a não ser num mundo em que a sua busca dependia de causas duvidosas, subordinadas, quando não ao movimento dos desejos materiais, a paixões de circunstâncias: ela podia combater esses desejos e essas paixões, podia também servi-las, não podia ser-lhes indiferente. A busca que a religião começou, e que prosseguiu, não deve menos que a da ciência ser libertada das vicissitudes históricas. Não que o homem não tenha inteiramente dependido dessas vicissitudes. Mas isto é válido para o passado. Chega o instante, precário sem dúvida, em que, a sorte ajudando, não devemos mais esperar a decisão dos outros (em forma de dogma) antes de ter a experiência desejada. Até agora, podemos comunicar livremente o resultado dessa experiência. Posso, nesse sentido, preocupar-me com a religião, não como o professor que dela relata a história, que fala entre outras pessoas do brâmane, mas como o próprio brâmane.
Mas eu não sou nem brâmane nem nada, devo continuar uma experiência solitária, sem tradição, sem rito, e sem nada que me guie, sem nada também que me atrapalhe. Expresso no meu livro uma experiência sem recorrer ao que quer que seja de particular, tendo essencialmente o cuidado de comunicar a experiência interior, isto é, aos meus olhos, a experiência religiosa, fora das religiões definidas». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT