segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A Alma das Pedras. Paloma Sanchez-Garnica. «Os olhares que Teodomiro e Paio trocaram entre si chegaram a provocar arrepios em Martín, sem que este compreendesse muito bem porquê. Em seguida, o bispo ordenou aos soldados…»

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Ano da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) Há lugares em que as relíquias dos santos aumentam a importância das igrejas que as guardam, interveio Paio, dirigindo-se ao bispo. Porque não ter na nossa diocese relíquias que resgatem os fiéis ao ostracismo em que vivem? Não negará Vossa Eminência que necessitamos de um estímulo que sacuda as consciências dos crentes, que há algum tempo lho reclamam. As gentes sentem-se atemorizadas pelo perigo muçulmano e a sua fé quebra-se quando assistem, indefesas, à destruição dos seus lares ou à morte dos seus entes queridos sob as espadas dos infiéis sem que ninguém lhes valha e perante a passividade geral. Teodomiro fez uma pausa para digerir este discurso. Ninguém acreditaria em nós..., murmurou o bispo, cabisbaixo e pensativo enquanto passava a mão pelo altar. O que pensas de tudo isto, Martín?, perguntou, cruzando o olhar com o do escriba. Martín ficou pensativo e com o olhar perdido durante alguns instantes. Apesar da sua desconfiança, não deixava de reconhecer que não lhe parecia má ideia a possibilidade de recorrer à existência de relíquias tão importantes como as do apóstolo S. Tiago. A proposta milagrosa era tentadora. Eminência, começou, comedido e prudente, como bem sabeis, fui vítima desta violência quando era criança e asseguro-vos que, se não fosse a firmeza e profundidade da minha fé, teria duvidado até do próprio Deus! Temos de pensar em proporcionar uma âncora aos fiéis indefesos, abandonados e perdidos, que facilmente se entregam às práticas pagãs enraizadas nestas terras, às quais se sentem demasiado apegados para as fazerem desaparecer. Talvez..., hesitou, olhando para Paio por momentos, talvez estejamos perante alguma grande inventio, Eminência; talvez esta seja a descoberta milagrosa de relíquias num lugar em que se desconhecia a sua existência. Devemos dar graças a Deus por isto.
Teodomiro olhou para ele, abatido. Sabia que o seu escriba tinha razão, pois, para seu desespero, o desânimo disseminara-se demasiado. A propagação de rituais pagãos baseados em tradições ancestrais e dedicados a divindades da natureza trazia-o assaz preocupado. As pessoas não encontravam motivos para apegar-se à fé num Deus que parecia abandoná-los a cada razia. O desânimo geral era evidente e o bispo sentia-se incapaz de encontrar uma forma de convencer os espíritos atribulados de tantos inocentes. Nem sequer sabemos o que há debaixo deste altar! Mas podemos descobrir, retorquiu Martín. Não será melhor deixarmos os mortos dormirem em paz o seu sono eterno?, perguntou Paio, pela primeira vez inquieto perante a possibilidade de se abrir a sepultura. Já que nos preparamos para venerar estes restos mortais como os do Santo Apóstolo, respondeu o bispo, determinado, pelo menos quero saber o que está dentro deste túmulo! Chamai os soldados e ordenai-lhes que removam o altar.
Tiveram de afastar-se para permitir que os homens tornassem a fazer força para erguer a pedra. Em menos de nada, o ar tornou-se tão irrespirável que estiveram a ponto de sair, mas o altar foi deslocado sem grande dificuldade, deixando a descoberto um buraco revestido de pedra com dois palmos de profundidade, quatro de largura e mais de seis de comprimento, em cujo fundo se via um monte de ossos desordenados. Contaram três corpos, visto que havia três caveiras. Teodomiro olhou pensativo para o interior da sepultura. O que vos apoquenta?, perguntou Martín. O bispo olhou-o demoradamente, com os olhos brilhantes e um ar grave. Eis aqui a minha condenação, Martín. Não será assim, pois o fazeis para maior glória de Deus. A descoberta destas relíquias atrairá a atenção da cristandade para esta terra. É um milagre!, acrescentou Paio. Um milagre..., murmurou Teodomiro, com um gesto abatido, um milagre que me condena para sempre ao Inferno!
Os olhares que Teodomiro e Paio trocaram entre si chegaram a provocar arrepios em Martín, sem que este compreendesse muito bem porquê. Em seguida, o bispo ordenou aos soldados que tornassem a colocar a pedra que servia de altar no sítio. Quando saíram para o exterior, já quase amanhecia. O bispo manteve-se em silêncio por um bocado, concentrado nos seus próprios pensamentos. Os soldados, esgotados pelo tempo passado sem dormir e pelo esforço realizado, afastaram-se um pouco, resmungando entre dentes. Paio e Martín continuaram à espera, até que o bispo acabou por falar, em tom firme. Tinha tomado uma decisão». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.

Cortesia SEmergência/JDACT