sábado, 17 de novembro de 2018

A Conquista de Santarém. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Como tinha falta de braços em Almourol, Mem decidiu aceitar o repto de Giraldo, mas avisou-o de não queria um assassino descontrolado, tinha de cumprir ordens»

jdact e wikipedia

Santarém. Fevereiro de 1147
«(…) Rabinho solteiro, sonha com parceiro.
Foi tal o corrupio de gente a cumprimentá-lo que Mem teve de reter-se em conversas demoradas e de provar repastos oferecidos, numa ou noutra casa. Porém, o seu olho atento não parou de mirar as muralhas na tentativa de descobrir uma fraqueza. A dada altura, enquanto examinava uma frecha por reparar, escutou uma voz inesperada, que lhe provocou temor de ter sido descoberto. É por ali que se ataca! Quando se virou para trás, Mem viu um jovem, talvez com vinte anos, de cabelos longos. Musculado e alto, de olhar vivo, o indivíduo transbordava confiança, mas também uma espécie de intensidade enlouquecida, própria dos amantes da violência. Era irrequieto e mexia muito os braços, como se precisasse constantemente de os exercitar. E devia ser pouco dado à prudência, pois logo perguntou: sois Mem, o cavaleiro de Almourol?
Sempre que o chamavam assim, o antigo almocreve sentia que a vida lhe sorrira. O outro apresentou-se: Giraldo, guerreiro e moçárabe como vós! De imediato, começou a gabar-se, lamentando que Abu Zhakaria não estivesse a mobilizar exércitos, pois precisava de espadeirar e cortar cabeças. Via-se que gostava disso e o sabia fazer. Era um animai impetuoso, difícil de ser domesticado. E Afonso Henriques? Junta tropas? perguntou. Mem referiu que os cristãos estavam sempre precavidos. A Andaluzia andava a ferro e fogo, olho vivo era essencial. Até ele, em Almourol, reconstruíra um agora sólido castelo. Precisais de um bom punho por lá?, questionou Giraldo. Sem parar para ouvir a resposta, garantiu mestria no uso da espada. Mostrou os reluzentes dentes e jurou a Mem que já degolara mouros e cristãos, acrescentando: mas os sarracenos vão perder, já não vale a pena lutar por eles.
Como tinha falta de braços em Almourol, Mem decidiu aceitar o repto de Giraldo, mas avisou-o de não queria um assassino descontrolado, tinha de cumprir ordens. Assim farei, se me deres guarida e comida, jurou Giraldo. Combinaram encontrar-se no dia seguinte, quando Mem regressasse a Coimbra. Antes de abalar, sempre com os olhos de águia bravia a brilharem, o outro apontou para o local na muralha que vira Mem observar e repetiu: é por ali que se ataca!
Um ligeiro incómodo apoderou-se do cavaleiro de Almourol ao ver Giraldo afastar-se. Aquele agitado exibia uma alegria facínora e precipitada, que facilmente se sobreporia a qualquer lealdade. Só que um castelo de fronteira precisava de homens duros, para quem a decência não existia. Tinha de arriscar.
Cavaleiro vencedor, precisa de um matador.
Nessa noite, Mem foi ao castelo de Abu Zhakaria. Fosse quem fosse que tivesse construído a alcáçova, era gente merecedora de admiração. O palácio de Santarém assentava no topo de uma elevação e, devido à espantosa situação, alguém o baptizara como o Ninho das Águias. Inatacável do lado do rio, onde uma empinada escarpa funcionava como uma defesa natural, do alto das suas torres topava-se qualquer movimento de tropas a enorme distância. A única forma de tomar aquele íngreme fortim era um ataque às muralhas a partir da estrada principal, mas uma operação dessas, se fosse mal preparada, daria tempo aos habitantes de se refugiarem na alcáçova, onde podiam aguentar-se durante meses.
Povo avisado, ataque malparado». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT