sábado, 10 de novembro de 2018

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «Isto é só teoria, inspetor-chefe, disse Jorge. Ele nunca teve o benefício da experiência directa. O que sabe disso? Disse Felipe, pondo-se de joelhos, agarrando nuns quadris imaginários…»

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«(…) Estas capas estão limpas, bem como o vídeo, o televisor, o móvel e o comando. Este tipo vinha preparado para fazer o trabalho. Tipo? Perguntou Falcón. Ainda não falamos sobre isso. Felipe ajustou ao rosto um par de lentes de aumento especiais e deu início a uma inspecção minuciosa do tapete. Falcón estava assombrado com os dois peritos de investigação criminal. Tinha a certeza de que nunca haviam visto nada tão horrendo em toda a sua carreira, pelo menos não em Sevilha, seguramente. E no entanto, ali estavam... Tirou do bolso um lenço quadrado, perfeitamente passado a ferro, e secou a testa com ele. Não, não era um problema de Felipe e de Jorge. Era seu. Eles portavam-se assim, porque era como ele próprio se portava normalmente e como lhes tinha ensinado que era a única maneira de proceder numa investigação de homicídio. Frieza. Objectividade. Distância. O trabalho de detective, se ouvia dizendo numa aula no anfiteatro da academia, é um trabalho destituído de emoção.
O que havia então de diferente com Raúl Jiménez? Porquê este suor, numa manhã fresca e clara de Abril? Sabia como lhe chamavam nas costas, na Jefatura Superior de Policia, na calle Blas Infante. El Lagarto. Gostava de pensar que era por causa da sua imperturbabilidade física, a impenetrabilidade da sua expressão, a sua tendência para olhar intensamente para as pessoas enquanto as escutava. Inês, a sua ex-mulher, a sua recém-divorciada mulher, tinha-lhe esclarecido esse mal-entendido: é frio, Javier Falcón. É frio como as pedras. Não tem coração. Então o que seria esta coisa me ribombando no peito? Empurrou a lapela com o polegar e deu por si de queixo cerrado, enquanto Felipe, junto ao chão, olhava para ele com olhos de peixe de aquário. Encontrei um cabelo, jefe, disse. Trinta centímetros. Cor? Preto.
Falcón se aproximou da mesa e olhou para a fotografia de la Familia Jiménez. Consuelo Jiménez vestia um casaco de peles até aos pés, com o cabelo louro armado ao alto como um bolo, enquanto os três filhos faziam um sorriso forçado para a fotografia. Mete num saco, disse e chamou o médico forense.
Na fotografia, Raúl Jiménez estava de pé ao lado da mulher, com os dentes de cavalo expostos num sorriso, a bochecha caída, dando-lhe um ar de avô e, à mulher, de filha. Casamento. Dinheiro. Conhecimentos. Falcón perscrutou o sorriso deslumbrante de Consuelo Jiménez. Belo tapete, este, disse Felipe. Seda. Mil nós por centímetro quadrado. Boa densidade, para que tudo assente perfeitamente em cima dele. Quanto acha que Raúl Jiménez pesa? Perguntou Falcón ao médico forense. Agora, entre os setenta e cinco e os oitenta quilos. Mas tendo em atenção a flacidez do peito e estômago, diria que já teve muito para cima de noventa. Problemas cardíacos? O médico dele deverá saber, se a mulher não souber. Acha que uma mulher seria capaz de erguê-lo daquela cadeira de pele, baixa, e pô-lo naquela cadeira de espaldar alto? Uma mulher? Perguntou o médico forense. Acha que foi uma mulher que fez isto? Não foi isso que lhe perguntei, doutor. O médico forense se empertigou, com esta segunda vez em que Falcón o fazia sentir-se idiota.
Já vi enfermeiras experientes levantarem homens mais pesados do que este. Homens vivos, claro, o que é mais fácil... Mas não vejo por que não. Falcón afastou-se, sem mais conversa. Devia perguntar ao Jorge acerca de enfermeiras experientes, inspetor-chefe, disse Felipe, de nádegas para o ar, como se estivesse farejando o tapete. Cale-se, disse Jorge, farto daquela piada. Parece que é uma questão de ancas, disse Felipe, E de contrapeso das nádegas. Isto é só teoria, inspetor-chefe, disse Jorge. Ele nunca teve o benefício da experiência directa. O que sabe disso? Disse Felipe, pondo-se de joelhos, agarrando nuns quadris imaginários e fingindo dar-lhes umas estocadas. Também tive a minha juventude. Não era grande coisa, a do seu tempo, disse Jorge. As garotas eram todas fechadas como ostras, não eram? As espanholas eram, disse Felipe. Mas eu sou de Alicante. Benidorm fica logo ao virar da esquina. Aquelas inglesas todas, nos anos 60 e 70... Está sonhando, disse Jorge. Sim, tive sempre sonhos muito excitantes, disse Felipe.
Os investigadores riram e Falcón olhou para eles, rastejando pelo chão, fuçando como porcos em busca de bolotas, com futebol e sexo lutando pela supremacia dentro das suas cabeças. Achou-os um pouco repugnantes e voltou-se para as fotografias penduradas na parede. Jorge meneou a cabeça para Falcón e articulou com os lábios para Felipe: maricas. Voltaram a rir. Falcón ignorou-os. O olhar, à semelhança de quando apreciava um quadro, foi atraído para as extremidades do conjunto das fotografias expostas. Afastou-se da secção central de pessoas famosas e deu com uma fotografia de Raúl Jiménez com os braços à volta de dois homens, ambos mais altos e corpulentos do que ele. À esquerda, estava o Jefe Superior de la Policia de Sevilla, comissário Firmin Léon, e, à direita, o promotor Juan Bellido. Falcón sentiu uma pressão física se abater sobre os ombros e mexeu-os para aliviá-la». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT