sábado, 17 de novembro de 2018

As Princesas de Córdova. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Se perco Chamoa, o rei de Portugal dá cabo de mim. Foi isso que Zhakaria explicou a Ismar, nos claustros do Azzahrat, tendo apenas Malik como testemunha»

jdact e wikipedia

As Princesas de Córdova. Silves, 1145
«(…) Sibilino, Ibn Qasi afirmou que uma princesa não andava nua em frente de soldados, mas desta vez ela não lhe replicou. Apenas sorriu, convencida de que a cidade onde nascera o obrigaria a engolir aquele moralismo enervante. Porém, o sufi surpreendeu-a, mostrando-lhe que possuía bons espiões. O vosso amigo Mem está preso em Córdova. Ou fazeis o que eu mando, ou mato-o quando lá chegar!

Córdova, Janeiro de 1145
Ao passear pelos corredores do Azzahrat, Abu Zhakaria teve a premonição de que os dias gloriosos de Ismar estavam a terminar.
Já nem os criados o respeitam...
Dois anos antes, ele e Fátima tinham-no deixado nos píncaros do poder, mas no presente, mesmo depois da vitória obtida em Soure, a autoridade de Ismar já era curta. O povo de Córdova não estimava aquele príncipe e muitos na Andaluzia já recusavam o seu mando. Na opinião largamente maioritária dos súbditos, Ismar fizera um acordo inaceitável com o imperador Afonso VII e esse dramático momento marcara o início da sua lenta degradação. Dois meses antes, Almeria e Granada haviam-lhe virado as costas, e mesmo os sevilhanos, normalmente leais, tinham-se recusado a manter as tropas em Córdova, impondo a desmobilização habitual do Inverno, o que nas circunstâncias equivalia a uma traição.
Ibn Qasi está a chegar...
Abu Zhakaria receava que o marido de Zaida se apoderasse de Chamoa, de Mem e de Martinho de Soure, presos nas masmorras do Azzahrat, o que o prejudicaria, pois os reféns portucalenses eram a única garantia de que Afonso Henriques não atacaria Santarém.
Se perco Chamoa, o rei de Portugal dá cabo de mim.
Foi isso que Zhakaria explicou a Ismar, nos claustros do Azzahrat, tendo apenas Malik como testemunha. Para que pudesse usá-la numa futura negociação com o rei de Portugal, tinha de levar Charnoa para Hisn Abi Cherif, antes que fosse tarde! Temeis a minha derrota?, questionou-o o príncipe. Abu Zhakaria recordou que as tropas de Ibn Qasi e Ibn Wasir eram mais numerosas do que as de Córdova. Sem a ajuda de Sevilha, Granada ou Almeria, Ismar podia ser derrotado. Zaida não me vai vencer!, ripostou este. O wali de Santarém admirou-o em silêncio, impressionado com a transformação que notava nele. Os seus olhos raiados de sangue eram um sinal claro de que dormia pouco, aflito com a situação vulnerável em que se encontrava. Era já um príncipe perdido, mas não o aceitava, continuava convencido da sua aura.
Onde estão as tropas que vos exigi?, perguntou ele. Abu Zhakaria justificou-se: mantinha três mil soldados a defenderem Santarém, pois temia uma investida vingativa de Afonso Henriques. Em Córdova, permaneciam apenas os trezentos homens que trouxera. Chamoa e Mem são meus prisioneiros!, insistiu Abu. Enervado, Ismar ameaçou-o: prometi-vos um vasto território no Oeste. Parti hoje e destituo-vos do cargo de wali de Santarém! Receoso, Abu Zhakaria tentou acalmá-lo. Não vou fugir! Vou levá-los para Hisn com a Fátima. Tenho de proteger a minha mulher! E de defender Santarém. Porém, Ismar contestou-o: a princesa Zaida jamais mataria a irmã, não era uma sanguinária! E Ibn Wasir estava do seu lado, preparava-se para trair Ibn Qasi. Wasir é um falso e um frouxo!, lembrou o desconfiado Abu Zhakaria. Tal como o governador de Sevilha!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT