domingo, 18 de novembro de 2018

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Mem, garanto-vos que o Pêro não petisca só a Ília! Com requintada maldade e evidente gozo, o nosso esperto rei executou assim a sua fria vingança…»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra, Março de 1146
«(…) Tantos homens me desejaram, até o imperador! De súbito, Chamoa sentiu uma inesperada revolta. Não aceitava aquele desatino submisso, tanta perna aberta para nada! Prometeu agir e dona Justa franziu a testa, preocupada.

Coimbra. Páscoa de 1146
Uma semana antes do casamento real, Chamoa anunciou que não iria comparecer, pois tencionava rumar ao Mosteiro de Pombeiro para passar o Domingo de Páscoa com o pai, Gomes Nunes, que lá se exilara a mando de Afonso VII. Antes assistir à tristeza de meu pai do que presenciar o triunfo da francesa! Logo que Afonso Henriques soube destas intenções, mandou chamar à sua presença Mem e pediu-lhe: tendes de convencê-la a assistir à boda! De início, o almocreve recusou. Mas o rei de Portugal não foi em conversa fiada. Mem, escusais de fingir, sei que a filhais! Espantado, arqueei as sobrancelhas e por momentos temi que Afonso Henriques fosse soltar as suas lendárias fúrias, sentindo-se encornado por Mem. No entanto, a cólera não lhe surgiu, pelo contrário. Compreendia Chamoa, que necessitava de um ombro onde carpir as mágoas, agora que ele ia casar. E Mem era amigo dela há muitos anos. Ela contou-me o que se passou durante o cativeiro, na serra Morena, adiantou Afonso Henriques, como se aceitasse algo inevitável. Nunca soube estar sozinha. Aceitava a existência de um amante, mas não que se ausentasse do casamento real, pois isso ofenderia a francesa, que jamais a deixaria voltar a Coimbra.
Chamoa sempre quis ser rainha, não podeis obrigá-la a assistir ao vosso casamento!, contestou Mem. Isso é uma tolice!, ripostou o rei de Portugal. O matrimónio real não passava de um arranjo para agradar ao Papa e lhe dar a ele uma descendência legítima. Bem mais importantes seriam as semanas seguintes! Egas Moniz está a morrer...
Subitamente pesaroso, Afonso Henriques recordou o agravamento da doença de meu pai, que não voltara a sair de Lamego. A sua esperada morte impunha mudanças na corte e para substituir o mordomo do reino o candidato mais consensual era Peres Cativo, nascido na Galiza, coisa que provocava desconforto em alguns. Sobretudo em Gonçalo Sousa. Vai levar a mal!, avisei.
O nosso alferes sempre fora dado a amuos intempestivos. Embora tivesse recebido inúmeros castelos no Entre Douro e Minho, como paga pelos préstimos guerreiros, não tinha os desejos de grandeza satisfeitos e iria revoltar-se se fosse preterido na nomeação para mordomo, demitindo-se prontamente do cargo de alferes. Também me parece, murmurou Afonso Henriques. Seria, portanto, necessário escolher um novo comandante das tropas e a tradição portucalense apontava para a nomeação de um jovem. Pêro Pais tem dezanove anos, é bom com a espada e sabe comandar. Será o próximo alferes, anunciou o rei. Mas, se Chamoa ofendesse a rainha com a sua ausência no casamento real, a nomeação do filho tornar-se-ia impossível.
Assim, cabia a Mem a tarefa árdua de a convencer, para a qual podia contar com um relevante aliado. Pêro Pais deseja o posto de alferes. E também quer permanecer em Coimbra por razões menos nobres..., afirmou o rei, com um sorriso matreiro. O filho mais velho de Chamoa, a despontar como macho impetuoso, aproveitara a prolongada ausência de Mem para alimentar uma forte amizade com as irmãs moçárabes, Ália, Élia e Ília. Ele não se amigou com as três, só o fez com a Ília! enxofrou-se o almocreve. Afonso Henriques soltou uma sonora gargalhada. Mem, garanto-vos que o Pêro não petisca só a Ília! Com requintada maldade e evidente gozo, o nosso esperto rei executou assim a sua fria vingança, mostrando ao rival que, se o encornava às escondidas, tal não o livrava de ser também enganado pelas moçárabes e por um jovem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT