quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Presságios. Não gostava de presságios. Se não bastassem aqueles acontecimentos nos Pirenéus, agora vinham os tropeções dessa mulher atrapalhar o seu sono»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O padre foi à casa de banho, vestiu o pijama, ajoelhou-se ao pé da cama, rezou por uns 15 minutos, deitou-se e apagou a luz da cabeceira. O silêncio tomou conta do edifício e já fazia algum tempo que não se ouviam as conversas dos peregrinos, que deviam estar cansados e tinham-se recolhido no albergue. Era meia-noite quando abriu a porta do armário, segurando o cajado na mão direita, mas calculou mal a altura e fez barulho ao tocar no chão. O padre acordou assustado e acendeu a luz: quem é você? Sou um peregrino e preciso fazer uma confissão especial. Só o senhor me pode perdoar. Você...!, exclamou o padre, horrorizado. Você é o demónio. E estava a espiar-me. Sem esperar mais, lançou o cajado contra o padre, que pôs as duas mãos na frente do peito para se proteger, mas não conseguiu evitar que a lâmina entrasse sem piedade no seu corpo, atravessando-o. Um grito agudo ecoou pela noite adentro. O vulto abriu a janela e desceu pela corda que havia deixado presa pelo gancho do lado de fora.

Depois da missa, Maurício foi até ao restaurante do hotel. Outra das tradições do Caminho é o prato do peregrino, normalmente uma salada, duas opções de prato principal, uma garrafa de vinho, pudim de caramelo ou iogurte de sobremesa. Restaurado com a ceia e mais animado com o efeito do vinho, voltou para o albergue. Tinha comprado um guia na livraria da Colegiata e estudou o trajecto para o dia seguinte, que terminaria em Larrasoana. Nem sempre se encontra leito livre nos albergues indicados pelo guia, porque a maioria dos peregrinos acaba indo para os mesmos lugares. Massajou a sola do pé com um creme bactericida, para se prevenir contra as bolhas e se aconchegou no travesseiro. A noite era uma orquestra com roncos de todos os sons. Mas quem chegava ali, depois de ter atravessado os Pirenéus a pé, não se importava com roncos e acomodações simples. O sono era pesado e o dia seguinte seria outro árduo dia de caminhada. Adormeceu, mas, de repente, acordou assustado. Que barulho teria sido aquele? Um grito? Será que ouvi um grito?
Uma mulher com aparência de 30 anos tinha tentado levantar-se para ir à casa de banho, mas tropeçara em alguma coisa e caíra. Logo em seguida, acendera uma pequena lanterna e fora saindo devagar por entre as camas. Não coxeava e, portanto, não fora nada grave. Teria sido uma infelicidade ferir-se logo no início do Caminho. Mas por que será que ela não acendera a lanterna, antes de se levantar? Um dos equipamentos mais importantes do peregrino é a pequena lanterna para quando se levanta muito cedo, ou então para ir à casa de banho, sem ter de tropeçar nas mochilas deixadas ao lado das camas nos albergues. Por que ainda a ideia de correr a luz pelas camas como se ela quisesse conferir alguma coisa?
Presságios. Não gostava de presságios. Se não bastassem aqueles acontecimentos nos Pirenéus, agora vinham os tropeções dessa mulher atrapalhar o seu sono. Esticou-se na cama e tentou dormir. Quem se teria deitado naquele leito na noite anterior? Aquela cama o aceitara com uma indiferença de quem já tinha recebido pessoas desconhecidas durante séculos. Ruminava estranhas preocupações e viu o vulto da mulher de retorno ao seu lugar. O cansaço e o silêncio venceram os seus receios e voltou a dormir. Acordou com a sensação de que dormira o suficiente. Melhor assim. Mas não fora um sono tranquilo, desses que deixam o corpo e a alma concorrendo em bem-estar no dia seguinte, porque tinha a confusa lembrança de vultos parados perto de seu beliche. Amanhecia, e é uma boa estratégia levantar-se cedo para aproveitar a parte da manhã, por causa do sol inclemente nessa época do ano. Não eram ainda seis horas quando se levantou. O albergue oferecia um café simples, mas o bar no pátio da Colegiata tinha uma refeição completa». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT