domingo, 11 de novembro de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Afonso VI obrigou a filha viúva, Urraca, a casar com o primo distante, Afonso I de Aragão, e determinou que o primeiro varão fruto desse casamento seria o futuro imperador da Galiza, de Leão, de Castela…»

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Coimbra, Julho de 1117
«(…) O menino observa uma última vez as tropas do califa. Nunca teve jeito para contas, mas ouviu dizer que são milhares. Pergunta a si próprio o que faria seu pai contra tantos. Foi vê-lo morrer num quarto sombrio da distante Astorga, e aquelas barbas falantes continuam dentro da sua cabeça. À noite, visitam-no, enormes e perturbadoras, e falam muito, falam sempre com ele, mas raramente percebe o que dizem. O pai é um fantasma, mas o menino gosta muito dele. Então, semicerra os olhos, sente uma fúria a crescer no coração, firma os dedos no granito da ameia e decide fazer uma promessa ao seu defunto pai. Lutarei até à morte e não deixarei Portugal cair nas mãos dos sarracenos!
No quarto do castelo, nessa manhã, eu e meus irmãos ouvimo-lo gritar. Embora eu fosse o mais dorminhoco dos três, já tinha acordado e preparava-me para ir brincar quando escutei aquela berraria do meu melhor amigo, Afonso Henriques. Aos gritos, ele prometeu ao conde Henrique lutar, lutar sempre, e se houve promessa que o meu melhor amigo cumpriu durante a sua longa vida foi aquela que fez ao pai, ao Sol e às nuvens, aos oito anos, no alto da torre do castelo de Coimbra, em frente dos exércitos de Ali Yusuf. Portugal começa como o fruto de uma promessa infantil.

Coimbra. Julho de 1117
Durante um passeio pela muralha de Coimbra, meu tio Ermígio e meu pai, Egas Moniz, chegaram a uma óbvia conclusão: era à divisão entre os cristãos que se devia a ousadia do califa almorávida que cercava a cidade. Desde a morte de Afonso VI, oito anos antes, os reinos peninsulares viviam numa bulha permanente que os tornava vulneráveis. Meu pai e meu tio, que tinham apenas um ano de diferença e estavam ambos a chegar aos quarenta, faziam a sua ronda matinal, cada um vestido com a sua dalmática, verde a de meu tio, azul a de meu pai. Pareciam dois pássaros eróticos, avançando em pequeninos passos, enquanto iam relembrando os culpados da desordem cristã. Afonso I de Aragão; dona Urraca; Gelmires, o maligno arcebispo de Compostela; Pedro Froilaz de Trava, pai de Bermudo e Fernão, e perceptor do futuro herdeiro, Afonso Rairnundes. E também dona Teresa. Mas talvez o maior culpado seja Afonso VI, concluiu Ermígio Moniz.
O velho imperador, avô de Afonso Henriques, baralhara tudo com os seus caprichos terminais. Era uma sombra do gigante que conquistara Toledo aos infiéis, o mais grandioso de todos os reis de Leão desde os visigodos. As suas decisões sucessórias. abruptas e ilógicas, haviam lançado a confusão na Península. Ao longo da vida, Afonso VI casara com muitas mulheres, porém elas só lhe davam filhas. Urraca, Teresa e outras meninas, legítimas ou bastardas, mas nada de meninos. Teve de ser uma moura convertida, Zaida, a filha do rei de Sevilha, a deitar cá para fora um rapaz. Porém, Deus não evita as desgraças mais cruéis, principalmente a quem as procura. Sancho, o único filho do imperador, foi enviado para a guerra à frente das tropas do pai, e morreu, com apenas treze anos, às mãos deste mesmo califa que agora cerca Coimbra.
Diz-se que Afonso VI ainda uivava de dor cinco dias depois de lhe darem a notícia. O filho fora trespassado por uma lança sarracena, em Uclés, e assim partira deste mundo o único que poderia ter unido cristãos e muçulmanos, pois tinha sangue real dos dois lados.
Sem varão a quem deixar a coroa, desfeito de amargura, Afonso VI olhou à volta, para o resto da sua família. Havia uma primeira filha, Urraca, cujo marido, o borgonhês Raimundo, já morrera. Tinha dela um neto que era o primeiro rapaz na linhagem, Afonso Raimundes, com apenas quatro anos. Existia um primo afastado, que reinava em Aragão e se chamava igualmente Afonso. E tinha uma segunda filha bastarda, dona Teresa, que também era casada com um borgonhês, o conde Henrique, e que acabara de ser mãe do seu primeiro rapaz, Afonso Henriques.
Contra a vontade dos seus conselheiros, o velho rei desafiou o destino e promoveu uma união arriscada, recordou meu pai. Afonso VI obrigou a filha viúva, Urraca, a casar com o primo distante, Afonso I de Aragão, e determinou que o primeiro varão fruto desse casamento seria o futuro imperador da Galiza, de Leão, de Castela, de Aragão e até de Navarra; o rei dos Cinco Reinos, e aquele a quem prestariam tributo as taifas, os pequenos reinos mouros da Ibéria, como Sevilha, Córdova, Saragoça, Múrcia e Badajoz». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

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