quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII). A necrópole visigoda e islâmica de Alporão. Marco Liberato. «… a concordar com Ângela Beirante quando concluiu, a partir dessas referências documentais que a valorização de Marvila parece posterior à Reconquista»

Cortesia de wikipedia e jdact

A expansão urbana nos finais do século XII. A densificação construtiva no planalto de Marvila
«(…) De resto, mau grado a precocidade da referência à paróquia de Marvila, em 1186, é indiscutível que nos decénios seguintes se observava ainda nas proximidades deste templo uma malha cadastral frequentemente interpolada por espaços vazios, denunciados pelo topónimo Pedreira ou pela doação de um ferragial em 1251, localizado a Este da igreja paroquial. Estes dados não permitem perspectivar a elevada densidade construtiva que seria espectável numa antiga medina. Pelo contrário, levam-nos a concordar com Ângela Beirante quando concluiu, a partir dessas referências documentais que a valorização de Marvila parece posterior à Reconquista. O registo arqueológico também não sustenta uma intensa ocupação do espaço nos séculos XI e XII. Resumindo-se praticamente à identificação de silos, que no momento em que a sua funcionalidade primária se esgotou foram colmatados com sedimentos que embalaram materiais de cronologia islâmica, a sua presença deve ser também encarada com precaução. Se em 2002 se verificava que no planalto de Marvila (…) nunca foram encontradas quaisquer estruturas de carácter habitacional ou outro, para além das fossas escavadas na rocha, a que habitualmente se chamam silos, as publicações posteriores sobre escavações na cidade não alteraram esse panorama (um artigo inserto na colectânea Santarém e o Magreb refere uma cisterna islâmica na Praça Sá da Bandeira sem no entanto apresentar qualquer comprovação material ou estratigráfica da cronologia proposta).
A permanente glosada aptidão cerealífera das planícies aluviais ribatejana e a sua posição, no cruzamento de importantes vias terrestres e fluviais dinamizariam em muito a propensão comercial da cidade, especialmente potenciada durante os primeiros séculos de domínio islâmico, período em que a linha de costa sofreu vários raides marítimos de que são exemplos as incursões normandas, enquanto a relativa interioridade de Santarém a tornou menos exposta a esta conjuntura de instabilidade militar (situação entretanto normalizada pela organização das defesas marítimas pelos califas omíadas nos finais do século X). Nesta perspectiva a frequência de covas de pão poderá significar não uma ocupação residencial generalizada mas antes a adscrição de amplas áreas ao armazenamento de produtos agrícolas.
A julgar pelos contextos arqueológicos estudados e já publicados, verifica-se de facto que nas duas centúrias que antecederam a conquista de Afonso Henriques, muitos silos foram abandonados, o que poderá denunciar um decrescimento dos excedentes agrícolas armazenados na vila. Uma explicação razoável para este processo seria a afirmação crescente da função comercial de Lisboa que passaria a redistribuir as produções do termo de Shantarin, embarcadas directamente na Ribeira. Muito embora a verificação desta tese só possa ser realizada com um estudo comparativo, que se afasta do propósito deste artigo, enquadra-se perfeitamente na imagem transmitida pelas fontes geográficas islâmicas coevas, que ilustra um processo de hierarquização dos pólos urbanos do Vale do Tejo, com vantagem para a cidade do estuário durante os séculos XI e XII.
Em conclusão, no actual patamar da investigação, cremos que o povoamento durante época islâmica estaria concentrado entre a Alcáçova e a necrópole agora identificada, enquanto a ocupação no planalto de Marvila, a existir, seria certamente muito incipiente. Os quatro a seis hectares ocupados pela cidade alcandorada, permitem perspectivar uma urbe de reduzidas dimensões (foi já sugerida uma área de 30 hectares, dos quais dois terços corresponderiam ao planalto de Marvila) quando comparada com as suas congéneres plenamente mediterrânicas como Sevilha ou Huelva, mas perfeitamente condizente com o seu posicionamento na periferia geográfica e política da rede urbana do Garb Al-Andaluz. E seriam ainda complementados pela área ocupada pela Ribeira. Muito embora seja necessário sistematizar as informações relativas ao arrabalde portuário, a sua importância para a dinâmica da urbe é revelada pela construção de uma muralha em época islâmica, sendo verosímil que a contabilização da sua malha cadastral faça triplicar o valor global (na Baixa Idade Média estendia-se por 10 há).
Como bem realçou Mário Viana é nesta dicotomia fortaleza/porto que a feição urbana da cidade deve ser entendida, afirmando-se como centro de consumo e plataforma de redistribuição comercial dos proventos da exploração agrícola, numa área cujas potencialidades de rendimento dinamizavam a estruturação de uma densa malha de pequenos núcleos de povoamento, glosada pelas fontes árabes e sugerida pela toponímia e que a arqueologia começa, ainda que timidamente, a comprovar (recentemente foi identificado um núcleo de povoamento rural islâmico junto a Muge, que se terá estruturado no século X). Este esquema de povoamento, com forte humanização dos campos no hinterland da cidade, poderia mesmo explicar a tardia urbanização de Marvila, só possível com um crescimento demográfico pós-reconquista, alimentado por uma eventual concentração populacional no centro urbano (a apropriação por parte dos monarcas da primeira dinastia de grandes parcelas de terreno junto ao Tejo poderia dinamizar o abandono de pequenos povoados estruturados em torno da sua exploração. Sobre as quezílias em torno das lezírias ribatejanas) e pela documentada chegada de colonos setentrionais, certamente atraídos pela produtividade das aluviões do Tejo mas também pela proximidade com as urbes meridionais que ainda hasteavam a bandeira do Crescente, repletas de recursos ao alcance de uma cavalgada estival». In Marco Liberato, Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII), a necrópole visigoda e islâmica de Alporão, Revista Medievalista, Nº 11, 2012, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT