sábado, 17 de novembro de 2018

As Princesas de Córdova. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Os soldados falavam, entusiasmados, da piscina de mercúrio do Azzahrat, onde se iriam espelhar, e foram envoltos nesse entusiasmo tolo que chegaram a Mértola, onde Zaida se espantou com a vastidão das tropas de Ibn Wasir»

jdact e wikipedia

As Princesas de Córdova. Silves, 1145
«(…) Filha, bico calado!
Se o marido ouvisse falar em Mem, nem a deixaria sair de Silves, quanto mais ir a Córdova! Tinha de chegar até lá em silêncio, aguentar o que via à sua frente com inquietação crescente. A cidade transbordava de soldados malcriados, que assustavam as mulheres solteiras, as casadas e mesmo os maridos destas. Havia tensão e confusão, contudo, não era essa a sua maior preocupação.
Filha, cuidado, IbnWasir é um impostor.
O marido gabava os feitos do farsante de Mértola, mas ela não dissipara os receios. Lembrava-se dele, baixote e falsete, cheio de salamaleques parvos e dúvidas religiosas. Ismar era mais rico do que Ibn Qasi, facilmente compraria a lealdade do asqueroso senhor de Mértola. Porém, o marido confiava no alcaide. Unidos seremos invencíveis!, exclamara Ibn Qasi. Quanto mais o sufi se iludia, mais Zaida temia o pior. Ibn Wasir facilmente os venceria, se passasse para o lado de Ismar. Ou, pior ainda, podia conquistar Córdova, tornando-se o senhor da capital.
Filha, nunca deixeis sozinha a vossa filha.
Pegou em Maryam ao colo e deu-lhe um beijo. Ia levá-la, não aceitaria deixá-la em Silves. Inquieta, dirigiu-se às cozinhas, entregou a menina às criadas e rumou à sala onde o marido lia, muito concentrado. A barba dele estava bem aparada, decerto um criado a cortara nessa manhã.
Filha, parece outro homem...
Zaida suspirou. Houve tempos em que o considerara bonito, mas agora achava-o feio, agressivo e consumido. O delírio bélico e religioso envelhecera-lhe o rosto. Quando partimos?, perguntou ela. Ibn Qasi ergueu a cabeça, mas não lhe sorriu. Outra coisa que há muito não fazia. Em breve. Vamos para Mértola, ao encontro de Ibn Wasir, adiantou Qasi, resmungando de seguida: infelizmente, ele não atacou Badajoz! E julgais que irá até Córdova?, perguntou Zaida. Ibn Qasi acenou com a cabeça, todo ele convicção. Com os dele, somamos cinco mil homens. São suficientes para tomar o Azzahrat de surpresa. Zaida fechou os olhos. O marido falava como se a guerra não fosse imprevisível, nem o inverno caprichoso. Os exércitos deles iam passar perto de Sevilha sem serem vistos? Que tolice! Ismar era o senhor da Andaluzia, os aliados sevilhanos não o iam abandonar. A estrela de Ismar empalideceu, continuou Ibn Qasi.
Presta tributo ao imperador cristão, os muçulmanos andaluzes já não acreditam nele. Ibn Wasir considera-o um frouxo! Sempre desconfiada, Zaida insistiu: confiais no alcaide de Mértola? O sufi não lhe chegou a responder, pois entraram na sala os seus ajudantes. Nunca mais falaram de guerra, nem durante a viagem para Mértola. Na gaziva, junto à filha e às escravas, Zaida foi apreciando as paisagens, com a certeza aguda de que era cedo de mais para tomarem Córdova.
Filha, vai ser uma desgraça!
Os soldados falavam, entusiasmados, da piscina de mercúrio do Azzahrat, onde se iriam espelhar, e foram envoltos nesse entusiasmo tolo que chegaram a Mértola, onde Zaida se espantou com a vastidão das tropas de Ibn Wasir.
Filha, o emir tem menos guerreiros do que o alcaide?
No dia seguinte, compareceu num repasto, oferecido pelo anfitrião da cidade. Zaida vestiu um belo alifafe, laranja e transparente, mas quando entrou no palácio de Mértola, o mesmo onde estivera seis anos antes, teve a estranha sensação de que a sua situação não melhorara quase nada. E a sua incomodidade só aumentou, quando Ibn Qasi lhe gritou: que vestes são essas? Sem hesitar, o marido ordenou-lhe que se tapasse, caso contrário regressaria de imediato à tenda! E o sempre acanalhado alcaide de Mértola adiantou, com óbvio gozo: posso oferecer-vos o manto de uma escrava! Furiosa, Zaida deu meia-volta e retirou-se da sala, regressando à sua tenda, onde, quando a noite caiu, apareceu Ibn Qasi. Em tom solene, disse-lhe que jamais perdoaria a vergonha por que o fizera passar. Só não a mandava de volta para Silves porque precisava dela em Córdova. Quando chegar à cidade, será a mim que o povo respeitará!, ripostou ela, irritada». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT