quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Último Acto em Lisboa. Robert Wilson. « Bateram à porta. Eva apagou o cigarro, libertou-se dos cobertores e tentou tufar com os dedos o cabelo loiro, mas desistiu quando se viu ao espelho sem pintura»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não é bem isso..., mas recupera-o de outra maneira. Poker, disse Felsen, pensando que ia ser um jogo muito descontraído… É um jogo muito internacional, disse o oficial-às-ordens, levantando-se. Então, às sete horas? Black tie, creio. Eva Brücke estava sentada à secretária do pequeno gabinete do seu apartamento, num 2º andar da Kurfürstenstrasse, no coração de Berlim. Vestia apenas uma combinação por baixo de um pesado quimono de seda preta com motivos dourados de dragões e cobrira os joelhos com um cobertor de lã. Ia fumando, a brincar distraidamente com uma caixa de fósforos e a lembrar-se do mais recente cartaz afixado no quadro de anúncios do prédio. Dizia ele: mulheres alemãs, o vosso líder e o vosso país confiam em vós. Soava-lhe nervoso e inseguro, como se os nazis, ou talvez apenas Goebbels, revelassem um receio inconsciente do incomensurável mistério do belo sexo. O pensamento fugiu-lhe da propaganda para o seu clube nocturno do Kurfürstendamm, Die Rote Katze. Os lucros tinham-se multiplicado nos últimos dois anos, simplesmente porque ela sabia o que agradava aos homens. Bastava-lhe olhar para uma rapariga e via os pequenos rastilhos que incendiavam os homens. As animadoras dos seus clubes nem sempre eram beldades, mas tinham sempre uma qualidade especial, talvez uns angelicais olhos azuis, um torso delgado, longo, vulnerável, ou uma boquinha tímida, numa combinação perversa com a sua total disponibilidade, a sua prontidão em fazer qualquer coisa que esses homens pudessem imaginar. Endireitou os ombros e puxou o cobertor pendurado nas costas da cadeira, embrulhando-se nele. Começava a sentir-se tonta por fumar tanto e tão depressa, tão depressa que a ponta do seu cigarro era um longo, fino, aguçado lápis. Isso só acontecia quando se irritava, e pensar em homens irritava-a. Os homens só lhe arranjavam problemas, nunca lhe resolviam nenhum. Pareciam ter sido feitos para inventar complicações. O amante dela, por exemplo. Porque não havia ele de fazer o que lhe competia e amá-la, simplesmente amá-la? Porque havia de querer ser dono dela, interferir na sua vida, ocupar o seu território? Porque havia de ter a mania de levar coisas dela? Com um piparote atirou a caixa de fósforos para cima da secretária. Ele era um homem de negócios, e isso, naturalmente, era o que os homens de negócio faziam, acumular coisas. Tentou não pensar nos homens, sobretudo nos seus clientes e nas suas visitas às traseiras do clube, onde se sentavam a fumar e a beber, cheios de falinhas mansas até chegarem ao que pretendiam, e que era sempre uma coisa especial, qualquer coisa realmente especial. Devia ter sido médica, um daqueles médicos à nova moda que curavam os doidos a falar com eles, porque, à medida que a guerra se prolongava, tinha verificado que os gostos dos clientes mudavam. Agora era habitual incluírem, como tinha descoberto à sua custa, um componente de dor, tanto provocá-la como, numa espécie de compensação, sofrê-la. E também havia aquele homem que tinha vindo com um pedido que nem ela sabia se poderia satisfazer. Um homem tão discreto, apagado, calado, que ninguém adivinharia...
Bateram à porta. Eva apagou o cigarro, libertou-se dos cobertores e tentou tufar com os dedos o cabelo loiro, mas desistiu quando se viu ao espelho sem pintura. Apertou o cinto do quimono e foi abrir. Klaus, disse, forçando um sorriso. Não te esperava. Felsen puxou-a para si ali mesmo no patamar e beijou-a com força na boca, desesperado depois de dois dias no quartel. Fez deslizar a mão pelas costas dela abaixo. Ela empurrou-o levemente com os punhos cerrados, afastando-se. Estás todo molhado e eu ainda agora acordei. E depois? Ela voltou para dentro, foi pendurar-lhe o chapéu e o sobretudo e encaminhou-o para o gabinete. Ele seguiu-a, coxeando ligeiramente. Eva nunca usava a sala de estar, preferia divisões pequenas. Café?, perguntou ela, já a caminho da cozinha. Tinha pensado... Café de verdade. Com brande? Felsen encolheu os ombros e foi sentar-se no gabinete, na cadeira dos clientes em frente da secretária. Acendeu um cigarro e retirou da língua os fiapos de tabaco. Eva voltou com o café, duas chávenas, uma garrafa e cálices. Tirou-lhe um cigarro, que ele acendeu. Não sabia onde isto tinha ido parar, disse, aborrecida, arrancando-lhe o isqueiro da mão». In Robert Wilson, Último Acto em Lisboa, 1999, tradução de Maria Douglas, Gradiva Publicações, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-662-762-1.

Cortesia de Gradiva/P/JDACT