quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII). A necrópole visigoda e islâmica de Alporão. Marco Liberato. «Os seus aspectos formais são absolutamente consonantes com os rituais prescritos pela religião do Corão, uma vez que os cadáveres foram depositados em decúbito lateral direito…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Dada a implantação tipificada para as necrópoles islâmicas, invariavelmente no exterior da cidade dos vivos (as excepções admitidas estavam reservadas a personagens de elevado estatuto social, como elementos da família real ou em situações de assédio militar à cidade), é seguro que a zona a este de Alporão se manteve vazia de construções durante os primeiros séculos após a integração da cidade nos domínios muçulmanos uma vez que as inumações continuaram, interceptando frequentemente os contextos funerários anteriores. Os seus aspectos formais são absolutamente consonantes com os rituais prescritos pela religião do Corão, uma vez que os cadáveres foram depositados em decúbito lateral direito, no interior de simples fossas escavadas na rocha, não se detectando qualquer espólio votivo associado.
No entanto, se bem que todos os enterramentos identificados partilhassem as características mencionadas, verifica-se que alguns deles, restritos à secção Norte da área intervencionada, têm uma orientação ligeiramente desfasada da posição canónica, estando orientados Norte/Sul, com a face virada a Nascente. Já no quadrante sul e sueste da área intervencionada, todos as sepulturas estão dispostas na direcção NE/SW que no Al-Andaluz garantia um correcto alinhamento com a quibla (a sua direcção astronómica encontra-se em torno dos 100 graus, mas era considerado válido qualquer ponto no quadrante SE). Obviamente que os períodos de transição tendem a originar situações de heterodoxia, quer pela natural vigência de soluções de continuidade, quer pela reduzida intensidade dos novos comportamentos e opções culturais. O incremento da actividade arqueológica das últimas décadas tem-se revelado fundamental para revelar, ainda que timidamente, o conspecto material dessas alterações. A mesma hesitação na orientação dos enterramentos de período islâmico tem sido referenciada em assentamento rurais, estruturalmente menos permeáveis às mudanças culturais, como no sítio do Vale do Bouto, Loulé, onde algumas inumações em decúbito lateral continuaram a ser orientadas E-W, mas também em povoações marcadamente urbanas como Mértola, onde 13% dos esqueletos do Rossio do Carmo estão, à semelhança dos identificados em Santarém, depositados no sentido Norte-Sul.
Em ambiente urbano, o desajustamento da orientação nos primeiros momentos da presença islâmica pode ser explicado pela conversão de templos anteriores em mesquitas, o que implicava um desajustamento da quibla face à sua direcção astronómica e cartográfica. É certo que frequentemente o mirab era colocado na parede Sul por una aversion a orar hasta Este (a imitar a los cristianos), mas possivelmente, em especial nas cidades mais afastadas dos centros políticos e religiosos do Al-Andaluz e/ou junto de comunidades recentemente islamizadas, as igrejas poderão ter sido utilizadas sem alteração, o que explicaria a orientação N/S de algumas das sepulturas de Santarém e também de Mértola. Só a construção ex-novo de templos permitiria orientá-los perfeitamente para Meca pelo que a construção da mesquita aljama de Santarém pelo califa Hisam II, no século X, poderá ter contribuído para normalizar o ritual funerário, difundido definitivamente a solução canónica por todos os necrotérios da cidade.
Este espaço de necrópole foi abandonado ainda durante o domínio islâmico, uma vez que vários enterramentos foram interceptados por estruturas negativas, correspondendo certamente a silos, posteriormente reconvertidos em lixeiras e entulhados com despejos domésticos. Muito embora seja necessário sistematizar o estudo de todos os materiais arqueológicos recuperados no seu interior, a datação contextual da última utilização de algumas estruturas aponta para um período entre a segunda metade do século XI e a centúria seguinte.

A reorganização funcional nos séculos XI-XII
Consideramos que amortização da função funerária neste espaço não estará relacionada com um processo de expansão do tecido urbano, mas antes com os equilíbrios geoestratégicos observados no extremo ocidental da Península e que colocaram Santarém, precisamente nessa cronologia, na linha da frente dos confrontos entre as unidades políticas que se digladiavam pela sua administração. O sinal de alerta definitivo para o campo muçulmano terá sido a integração durante 18 anos da cidade nos domínios leoneses». In Marco Liberato, Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII), a necrópole visigoda e islâmica de Alporão, Revista Medievalista, Nº 11, 2012, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT