quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A Imortalidade. Milan Kundera. «Ela foi embora, de maio, andando ao longo da piscina e quando já tinha ultrapassado o professor de natação aproximadamente uns quatro ou cinco metros, virou a cabeça para ele, sorriu, e fez um gesto com a mão»

Cortesia de wikipedia e jdact

O rosto
«A senhora poderia ter sessenta, sessenta e cinco anos. Eu a olhava da minha espreguiçadeira, recostado diante da piscina de um clube de ginástica no último andar de um prédio moderno de onde se via Paris inteira através de imensas janelas envidraçadas. Esperava o professor Avenarius com quem me encontro ali de vez em quando para discutir umas coisas e outras. Mas o professor Avenarius não chegava, e eu olhava a senhora; só, na piscina, imersa até à cintura, ela olhava o jovem professor de natação que, de roupão, em pé um pouco acima de onde ela estava, dava-lhe uma aula. Obedecendo a suas ordens, ela apoiou-se na borda da piscina para inspirar e expirar profundamente. Fez isso seriamente, com zelo, e era como se das profundezas das águas se elevasse a voz de uma velha locomotiva a vapor (essa voz idílica, hoje esquecida, só posso transmitir aos que não a conheceram, comparando à respiração de uma senhora de idade que inspira e expira na borda de uma piscina). Olhava-a fascinado. Seu ar cómico pungente me cativava (esse ar cómico, o professor de natação também percebia, pois os cantos de seus lábios pareciam tremer a toda a hora), mas alguém falou comigo e desviou a minha atenção. Pouco depois, quando quis voltar a observá-la, a aula havia terminado. Ela foi embora, de maio, andando ao longo da piscina e quando já tinha ultrapassado o professor de natação aproximadamente uns quatro ou cinco metros, virou a cabeça para ele, sorriu, e fez um gesto com a mão.
Meu coração apertou-se. Esse sorriso, esse gesto, eram de uma mulher de vinte anos! Sua mão tinha girado no ar com uma leveza encantadora. Como se, brincando, ela jogasse para seu amante um balão colorido. Esse sorriso e esse gesto eram cheios de encanto, enquanto que o rosto e o corpo não o eram mais. Era o encanto de um gesto sufocado no não-encanto do corpo. Mas a mulher, mesmo que soubesse que não era mais bonita, esqueceu isso naquele momento. Por uma certa parte de nós mesmos, vivemos todos além do tempo. Talvez só tomemos consciência de nossa idade em certos momentos excepcionais, sendo, na maior parte do tempo, uns sem-idade. Em todo o caso, no momento em que se virou, sorriu e fez um gesto com a mão para o professor de natação (que não foi capaz de se conter e caiu na gargalhada), ela não tomava conhecimento de sua idade. Graças a este gesto, no espaço de um segundo, uma essência de seu encanto, que não dependia do tempo, revelava-se e me encantava. Fiquei estranhamente comovido. E o nome Agnès surgiu no meu espírito. Agnès. Nunca conheci uma mulher com esse nome.
Estou na cama, mergulhado na doçura de um torpor. Às seis horas, depois do primeiro e leve despertar, estendo a mão para o pequeno rádio colocado perto do meu travesseiro, e aperto o botão. Ouço as notícias da manhã, mal distinguindo as palavras, e durmo de novo, durmo tanto que as frases que escuto transformam-se em sonhos. É a fase mais bela do sono, o mais delicioso momento do dia: graças ao rádio, saboreio os meus eternos despertares e cochilos, esse embalo soberbo entre a vigília e o sono, esse movimento que por si só me tira o desgosto de ter nascido. Será que sonho ou estou realmente na ópera, diante de dois actores vestidos de cavalheiros que falam com entonações acentuadas e variadas a previsão do tempo? Por que será que não fazem isso com o amor? Depois compreendo que se trata de locutores, não falam mais, mas se interrompem um ao outro brincando. O dia será quente, tórrido, haverá tempestade, diz o primeiro, que o outro interrompe, fazendo graça: não é possível! O primeiro responde no mesmo tom: mas sim, Bernardo. Sinto muito, mas não há escolha. Um pouco de coragem! Bernardo cai na gargalhada e declara: eis o castigo dos nossos pecados. E o primeiro: por que, Bernardo, tenho de sofrer pelos seus pecados? Então Bernardo ri ainda mais, para deixar claro para os ouvintes de que pecado se trata, e eu o compreendo: existe apenas uma coisa que todos desejamos: que o mundo inteiro nos considere grandes pecadores! Que nossos vícios sejam comparados aos temporais, às tempestades, aos furacões! Ao abrir hoje o guarda-chuva em cima da cabeça, que cada francês pense com inveja no riso equívoco de Bernardo. Giro o botão esperando dormir novamente em companhia de imagens mais interessantes. Na estação ao lado, uma voz de mulher anuncia que o dia será quente, tórrido, tempestuoso, e alegro-me de ver que na França temos tantas estações de rádio, e que todas, no mesmo momento, falam a mesma coisa. O feliz casamento da uniformidade com a liberdade, o que é que a humanidade poderia desejar de melhor? Portanto volto à estação onde Bernardo se gabava dos seus pecados; mas no seu lugar, uma voz de homem entoa um hino ao último modelo da fábrica Renault, giro ainda o botão, um coro de mulheres enaltece as liquidações de casacos de pele, volto para Bernardo, a tempo de ouvir os últimos compassos do hino à Renault, depois o próprio Bernardo retoma a palavra». In Milan Kundera, A Imortalidade, 1990, Editora dom Quixote, 2012, ISBN 978-972-204-881-1.

Cortesia de EdomQuixote/JDACT