quinta-feira, 29 de novembro de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «O grande homem das conquistas africanas veria a sua estrela empalidecer nos ermos agrestes de Castela. Depois, pueril e sempre pusilânime, incapaz de uma decisão pensada…»

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A morte de Lancelot
«(…) Que desejariam eles, nascidos perto do mar, alguns mesmo com o Atlântico a beijar-lhes o corpo crestado do sol, na pesca, ou sobre as tábuas das naus, quando num ou noutro arremedo de aventura, tinham andado pelo mar, senão o chamamento do oceano e dessedentar-se nas soberbas e copiosas planuras verdes, sonhando com ilhas ricas e férteis que os esperavam?... São sempre os sonhos de quem sofre na carne o jugo das opostas realidades nos momentos de sofrimento e desânimo. As orações dos intervenientes na campanha e as de dona Filipa em Odivelas, certamente, por aquele primo Rei que lhe matara o pai mas já estaria perdoado porque não fora a raiz e razão do Mal que o levara, de nada serviram ao Rei. Dona Leonor, a nora, rezava também enquanto se entretinha com o filho que era o enlevo dos seus olhos e dos do pai. Em Aveiro, dona Joana seguia os acontecimentos através de informadores que lhe referiam as novidades dos correios que singravam entre Placência, Toro, Burgos, Samora e Lisboa, rezava também para que o pai levasse a bom termo a guerra, tal como sucedia em todo o reino, mas as coisas complicavam-se. Dona Joana, mirando uma das iluminuras do livro de horas que pertencera ao avô, os olhos fixos na imagem da virgem, lia Ave gratia dominus tecum, e naquela tocante cena da Anunciação devia inspirar-se para uma oração muito especial à Mãe do Salvador por aquele pai adorado, bonacheirão e audaz, tão audaz nos seus ímpetos cavalheirescos, que estava a arrastar-se para uma outra cena no palco difícil e inexorável da política, onde iria em breve descobrir que já não tinha lugar, ou nunca o tivera.
O grande homem das conquistas africanas veria a sua estrela empalidecer nos ermos agrestes de Castela. Depois, pueril e sempre pusilânime, incapaz de uma decisão pensada, meditada, definitiva, deixava-se levar pelas correntes opostas, controversas, dos próprios partidários. Ora o aconselhavam a marchar sobre Madrid, e ele aceitava a ideia, mas recuava sob a chuva de protestos dos nobres portugueses, ora cedia às instâncias destes para ficar quieto em Zamora e no castelo do Toro, cujas torres circulares o protegiam de qualquer ataque inimigo.
Perplexo, sempre em ânsias, no centro de um complexo jogo que o ultrapassava, ia devorando nas etapas de uma guerra sem fim nem quaisquer garantias de uma decisiva vitória, o dinheiro, as possibilidades de alimentar o exército e o manter activo e sem suspeita de desalento. Veio de seguida a doença, com as infecções, as diarreias que o calor provocava, as febres que a ingestão de água contaminada e os frutos verdes activavam. Veio o desânimo. Os alcaides começavam a mudar de planos e a escrever a Isabel de Castela. A simplicidade, a bonomia do Rei português, a sua infantil credulidade tinham-nos decidido a abandoná-lo. Essas deserções podiam ser fatais e, pior do que isso, era o jogo duplo, velhaco, dos nobres castelhanos.
Por cá, a situação era difícil porque o Príncipe governava um país pobre, enfraquecido pela guerra, e começava a compreender, com alguma dor, a nefasta amplitude da deficiente administração paterna. Mas nada disse e fez os impossíveis por se sobrepor a essas dificuldades com uma mestria superior ao que se exigia da sua experiência e idade. Afonso desejava ardentemente que o filho estivesse com ele, conversasse com ele. Nunca, mesmo agora, na companhia de seus amigos, de Fernando de Bragança, de seus nobres que o idolatravam, se sentira tão só. Era essa a solidão total: não poder abrir a sua alma à inteligente compreensão do filho, à sua perspicácia. Adorava aquele rapaz esbelto, de tez branca como a mãe e de olhos negros onde cintilava uma espantosa luminosidade e que Isabel lhe dera meses antes de morrer. Perante aquela rapariguinha, filha da irmã, sua mulher no leito logo que o Papa autorizasse, não sentia um décimo do que sentira outrora pela mulher amada. Nem sentia coisa nenhuma a não ser uma grande piedade e a certeza moral do dever de homem e cavaleiro de a defender. Ela poderia dar-lhe a Coroa de Castela, mas, de repente, embora ainda novo, começava a sentir-se distante, envelhecido. Ainda, por cima, sabia-se, ao fim de meses de campanha, inútil, quase indefeso. Não possuía forças militares suficientes para alicerçar as suas posições nos inevitáveis lugares estratégicos que ocupara e prosseguir, em campo, a guerra. Além disso, o esforço de guerra também tinha de ser mantido ao longo da fronteira, do lado de Portugal, onde os inimigos castelhanos entravam em incursões frequentes, queimando, arrasando aldeias e vilas». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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