terça-feira, 20 de novembro de 2018

A Criada do conde Henrique. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «… voltando lá passados três anos, para o levantar e entregar nas mãos de Paio Soares. O conde Henrique, Martinho de Soure e o vosso primeiro marido sempre confiaram em mim»

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A Criada do conde Henrique. 1147
Coimbra, Outubro de 1147
«(…) Mal o conde morreu, a maldosa dona Urraca acusou Egas Moniz de ter trocado o aleijadinho Afonso Henriques por Lourenço Viegas, dizendo que o milagre que curara as enfermidades do menino era uma invenção! Para se proteger contra a eventualidade de alguém descobrir o seu bastardo secreto, que sabia afinal vivo, pois o conde lho dissera no auge da discussão, a rainha Urraca lançou uma cortina de fumo que sujava a reputação do conde Henrique, de dona Teresa e do pequeno Afonso Henriques. Que maldade!, indignou-se Chamoa. Apesar dos veementes desmentidos de Egas Moniz, o objectivo da velhaca Urraca fora atingido. A intriga de Compostela, colou e uma desconfiada dona Teresa nunca mais apreciou o filho com os mesmos olhos. Com um suspiro piedoso, Afonso VII recordou: a minha tia Teresa sempre suspeitou de que Afonso Henriques não era seu filho. Decerto, por isso, nunca o amou.
O que nenhuma das duas irmãs soube é que, antes de falecer, o moribundo conde Henrique se confessara a Martinho Soure, que lhe dera a extrema-unção e ouvira dele um desejo final. Temendo que dona Urraca descobrisse o esconderijo do bastardo, o conde Henrique pediu ao pároco de Cárquere que entregasse o menino a um nobre da sua confiança. Quem era esse portucalense?, perguntou Chamoa. Afonso VII suspirou, antes de responder: o vosso primeiro marido, Paio Soares. O coração da minha cunhada quase explodiu e ela sentiu-se invadida por um mal-estar doloroso. Ramiro, o bastardo do seu primeiro marido, supostamente gerado num encontro deste com uma deslavada soldadeira, não era afinal filho dele, mas sim da rainha Urraca?
Atarantada de perplexidade, balbuciou: o meu primeiro marido sabia quem era a mãe de Ramiro? Afonso VII admitiu essa possibilidade. Após os obscuros acontecimentos de Astorga, o alferes Paio Soares afastara-se para o seu castelo, na Maia, temendo a fúria vingativa de dona Urraca. - Vosso marido só regressou à corte portucalense depois da morte de minha mãe, recordou o imperador. Tinha medo dela. Portanto, o seu meio-irmão Ramiro, filho de dona Urraca, vivera anos como bastardo de Paio Soares. E o único que conhecia esta verdade era Martinho, o pároco de Cárquere e mais tarde de Soure. Quem vos contou tal coisa?, perguntou Chamoa. O imperador esclareceu-a: como sabeis, o padre Martinho foi torturado e morto pelo príncipe Ismar, em Córdova. Foi este quem me contou a verdade sobre Ramiro, quando veio a Toledo falar comigo. Curiosamente e a partir desse dia, Afonso VII desinteressara-se da intriga de Compostela. Afinal, Afonso Henriques nunca fora trocado por Lourenço Viegas, escusava de tentar miná-lo com essa falsa trapaça! Subitamente amputado da arma política com que tentara denegrir o primo portucalense, esquecera o assunto até porque julgava o seu meio-irmão Ramiro já morto. Só em Abril deste ano soube que ainda vivia, adiantou Afonso VII.
Alguém viera a Toledo, informá-lo de que o antigo templário se encontrava em Lisboa, onde usava o falso nome de Orimar. O morto-vivo?!, aterrou-se Chamoa. O imperador acalmou-a, garantindo-lhe que o seu espião já regressara a Lisboa, com ordens para matar Ramiro. Afonso Henriques sabe disso?, perguntou ela. Afonso VII abanou a cabeça, era óbvio que não. Por fim, com um sorriso malicioso, perguntou se ela não desejava saber quem era a misteriosa criada do conde Henrique. A mulher que foi ao Mosteiro de Cárquere?, perguntou Chamoa. Divertido, Afonso VII contou que, em Astorga, ainda havia quem se recordasse de uma antiga criadita que aos vinte anos abandonara o castelo dias depois da morte do conde Henrique. O seu nome era Ana Justa, ironizou o imperador. A vossa ama.
Dona Justa era a criada do conde Henrique, a mulher que fora a Cárquere deixar e buscar Ramiro, o bastardo de Urraca! Chamoa nem queria acreditar: a única depositária viva dos segredos do conde Henrique estivera sempre perto dela, cuidando dos seus seis filhos! Virgem Santíssima..., murmurou, atordoada. Depois de a deixar recuperar a calma, o imperador puxou-a e começou a tocá-la nos seios. Contara-lhe tudo, agora queria mais. E, apesar de atarantada com o que soubera, Chamoa deu-se, pois sentia-se grata. Ele merecia, revelara-lhe a intriga de Compostela. Quando, já no final de Setembro, a minha cunhada regressou a Coimbra, chamou a ama e contou-lhe o que descobrira. Porque nunca haveis falado comigo?, perguntou. Dona Justa, sempre serena, suspirou. Até hoje, ninguém me perguntou nada. Depois, confirmou que quase quarenta anos antes ajudara dona Urraca a dar à luz o bastardo, em Astorga, após o que fora a Cárquere com o conde Henrique depositar Ramiro, voltando lá passados três anos, para o levantar e entregar nas mãos de Paio Soares. O conde Henrique, Martinho de Soure e o vosso primeiro marido sempre confiaram em mim». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                    
Cortesia da CasadasLetras/JDACT