quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Último Acto em Lisboa. Robert Wilson. «Passou-lhe os dedos pelos cabelos ásperos e acariciou-lhe a maçã do rosto com o polegar, como se ele fosse uma criança com um sinal. Inclinou-lhe a cabeça para trás e deixou-lhe a marca»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Já tinha posto báton e escovado o cabelo. Foi tirar o telefone da tomada para poderem falar à vontade. Onde tens estado?, perguntou. Ocupado. Problemas na fábrica? Antes fosse isso. Ela serviu o café e deitou umas gotas de brande na sua própria chávena. Felsen impediu-a de fazer o mesmo na dele. Depois. Agora quero saborear o café. Há dois dias que me fazem beber chá. Fazem? Quem? Os SS. Brutais, esses rapazes, disse ela com uma ironia automática, sem sorrir. Que querem os SS do meu cordeirinho suábio? O fumo subia em espirais sob o candeeiro art deco. Felsen baixou o abat-jour. Não me disseram, mas acho que é um cargo. Pediram o teu pedigree? Disse-lhes que o meu pai arava com as mãos nuas a fértil terra alemã. Gostaram. Falaste-lhes do teu pé? Disse que o meu pai me tinha deixado cair um arado em cima. Riram-se? Não é um ambiente muito animado. Felsen acabou de beber o café e deitou brande sobre as borras. Conheces um tal Gruppenführer Lehrer?, perguntou. O SS-Gruppenführer Oswald Lehrer, disse ela, imobilizando-se. Porquê? Vou jogar cartas com ele logo à noite. Consta que está encarregado de gerir as SS, ou, mais precisamente, os KZ, como uma empresa comercial..., pagando as suas próprias despesas, ou coisa parecida. Conheces toda a gente, não é? É o meu trabalho, disse ela. Admira-me que nunca tenhas ouvido falar dele. Já esteve lá no clube. Neste e no antigo. Ouvi falar, claro, disse ele, mas era mentira. Felsen pensava febrilmente. Os KZ. Os KZ. Que tinha ele a ver com isso? Quereriam distribuir-lhe mão-de-obra barata dos campos de concentração? Reconverter a sua fábrica para a indústria bélica? Não. Um cargo. Queriam dar-lhe um cargo. Sentiu de repente um calafrio na espinha. Não iam decerto encarregá-lo de gerir um KZ? Ou...? Bebe mais brande, disse Eva, sentando-se ao colo dele. Não te canses a adivinhar. Nunca se sabe.
Passou-lhe os dedos pelos cabelos ásperos e acariciou-lhe a maçã do rosto com o polegar, como se ele fosse uma criança com um sinal. Inclinou-lhe a cabeça para trás e deixou-lhe a marca do báton na boca. Pára de pensar, disse-lhe. Felsen introduziu uma manápula na manga do quimono e foi agarrar-lhe um dos seios firmes, sem soutien. Deixou a outra mão correr por baixo da bainha da combinação. Eva sentiu-o retesar-se sob o seu corpo. Levantou-se, voltou a embrulhar-se no quimono e apertou o cinto. Encostou-se ao vão da porta. Vejo-te esta noite? Se me deixarem sair, disse ele, mudando de posição na cadeira, incomodado pela erecção. Não te perguntaram como é que um moço de lavoura suábio sabe tantas línguas? Por acaso perguntaram. E tiveste de lhes fazer um relatório completo das tuas amantes. O meu mal foi ser bom de mais, disse Felsen, não conseguindo mostrar-se arrependido e deitando mais brande na chávena. Com as mulheres? Não, não. Chamei a atenção..., com a vida que faço... Tivemos bons momentos, disse Eva. Felsen, que fitava a carpete, levantou bruscamente a cabeça. Que disseste?, - perguntou, surpreendido. Nada, respondeu ela, inclinando-se por cima dele a apagar o cigarro. Felsen aspirou-lhe o cheiro. Ela recuou. Qual é o jogo desta noite?» In Robert Wilson, Último Acto em Lisboa, 1999, tradução de Maria Douglas, Gradiva Publicações, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-662-762-1.

Cortesia de Gradiva/P/JDACT