sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Tópicos para a História da Civilização. Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «Os sábios verificam a concordância da Lei e da Razão, da religião e da filosofia, mas o homem vulgar beneficia deste acordo…»

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Filósofos Orientais
«(…) Na Doutrina decisiva acerca da Concorância da Revelação e da Sabedoria (Fasl al-makal…), Averróis exalta a legitimidade da especulação racional. A Lei Corânica obriga o crente a especular racionalmente sobre os seres. A fé perfeita integra o saber racional. A obrigação da especulação racional estende-se ao exame das obras dos antigos. Proibir tal exame é contrariar a Lei desde que se tenha um sentido agudo da verdade acompanhado de virtude ética. Mas nem todos os homens são sensíveis à prova demostrativa: alguns só dão o seu assentimento aos discursos dialécticos, outros aos discursos retóricos mas Deus dirige-se aos homens por estas três espécies de discursos. Se a procura racional leva a verdades de que o Corão não fala, não há que recear, é como no direito quando se infere por um silogismo jurídico que não vem textualmente na Lei revelada. Quanto às excomunhões lançadas contra os filósofos, estas não devem ser tomadas como decisivas e sem apelo. Al-Gazallí não tem razão na sua condenação dos filósofos.
Os sábios verificam a concordância da Lei e da Razão, da religião e da filosofia, mas o homem vulgar beneficia deste acordo sem o conhecer. Convém, pois, que os sábios não vulgarizem o seu saber, pois de outro modo contribuirão para o surgimento das seitas. E esse foi o erro dos mutazilitas. Na Destruição da Destruição dos filósofos de Al-Gazallí (Tahafut al-Tahafut al- falasifa li-l-Gazallí), Averróis critica o neoplatonismo de Avicena, combate a condenação acerba lançada por Al-Gazallí contra os filósofos e passa em revista os grandes problemas da filosofia. O mundo é uma criação eterna. Não pode existir um tempo vazio que precederia num dos seus momentos a aparição do mundo. Este não emana de Deus, não é a sombra de Deus.
O ser é o que é, segundo a anterioridade e a posteridade das dez categorias. Neste sentido, dizemos que a substância existe por si mesma, e o acidente que existe no que existe por si. Quanto ao ser, no sentido do verdadeiro, é uma ideia no pensamento e consiste em uma coisa no exterior da alma ser conforme ao que ela é na alma. Não se pode separar a essência e a existência; a distinção apenas se faz pelo pensamento. Esse o erro de Avicena. Contra a teoria dos Sufis, o Deus de Averróis não é objecto de um conhecimento místico. Está presente no mundo físico e é a chave da abóboda do universo, como escreve na Doutrina decisiva acerca da Concordância da Revelação e da Sabedoria (Fasl al-Maqal…). Mas nem por isso é menos transcendente e a inteligência não pode atingi-lo em si mesmo mas simplesmente como criador, como primeiro motor. Como o conhecimento da alma é obscuro, é justo remeter-nos à revelação. Quanto à ressurreição dos corpos, ela é indemonstrável. Se a alma é imortal, não viverá somente de contemplação, terá necessidade das virtudes morais que implicam a presença do corpo.
Na Exposição da República de Platão, Averróis segue muito de perto o texto platónico iluminando-o com a Ética Nicomaqueia e com Al-Farabí. A interpretação rigorosa serve-lhe, a pretexto da sociedade ideal, para uma crítica, por vezes dura, à sociedade real. Se meditarmos nas leis religiosas, verificamos que o seu conhecimento se divide em conhecimento abstracto e em acções práticas como as qualidades éticas que a Lei aconselha a observar. Assim, a intenção da religião é idêntica ao fim da filosofia, tanto no modo como na sua finalidade. Também só podemos compreender o fim último do homem através das ciências teóricas. Ora o grupo dos cidadãos, em que a sabedoria se manifesta, é a mais pequena das suas classes, a dos filósofos. E isto porque estão menos envolvidos nas artes práticas. E é evidente que o governo da sociedade deve ser confiado a quem detenha a sabedoria. Quanto ao papel das mulheres na sociedade, Averróis considera que elas devem realizar os mesmos trabalhos que os homens, tendo, no entanto, em conta que são mais débeis. Não é impossível que, mediante uma educação esmerada, possam ser filósofas e governantes. Apesar disso, nas sociedades islâmicas desconhecem-se as habilidades das mulheres que são usadas só para a procriação e destinadas ao serviço dos maridos e à educação das crianças. Como não preparam as mulheres para nenhuma das virtudes humanas, a não ser fiar e tecer quando necessitam de fundos, sucede que representam uma carga para os homens». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de I.Camões/JDACT