quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A Imortalidade. Milan Kundera. «Finalmente, como se tivesse sentido o meu olhar, some no quarto vizinho e veste-se. Quem é Agnès?»

Cortesia de wikipedia e jdact

O rosto
«(…) Imitando a melodia que havia terminado, nos informa com uma voz cantante que acabava de aparecer uma biografia de Hemingway, a centésima vigésima sétima, mas essa realmente muito importante, porque demonstra que, em toda a sua vida, Hemingway não disse uma só palavra verdadeira. Aumentou o número dos seus ferimentos de guerra, fingiu ser um grande sedutor quando ficou provado que em Agosto de 1944 e depois a partir de Julho de 1959, ele estava completamente impotente. Não é possível, disse a voz risonha do outro, e Bernardo responde brincando: mas é verdade..., e voltamos todos para o palco da ópera, até Hemingway, o impotente, vai connosco, depois uma voz muito grave evoca um processo que no decorrer das últimas semanas emocionou toda a França: durante uma operação sem importância, uma anestesia malfeita provocou a morte de um doente. Em consequência disso, a organização encarregada de defender os consumidores, assim ela nos chama a todos, propõe filmar no futuro todas as intervenções cirúrgicas e guardar os filmes em arquivos. Esse seria o único meio, segundo a organização para a defesa dos consumidores, para garantir a um francês morto pelo bisturi, que seria devidamente vingado pela justiça. Depois durmo novamente.
Quando acordei, eram quase oito e meia; imaginei Agnès. Como eu, ela está deitada numa grande cama. A metade direita da cama está vazia. Quem é o marido? Aparentemente alguém que sai cedo no sábado. E por isso que ela está só e oscila deliciosamente entre o despertar e o sonho. Depois levanta-se. Em frente dela, num suporte comprido, está uma televisão. Joga a sua camisola, que cobre a tela como um cortinado branco. Pela primeira vez a vejo nua, Agnès, a heroína de meu romance. Ela está de pé, é bonita, não posso tirar os olhos dela. Finalmente, como se tivesse sentido o meu olhar, some no quarto vizinho e veste-se. Quem é Agnès?
Assim como Eva saiu de uma costela de Adão, assim como Vénus nasceu da espuma, Agnès surgiu de um gesto de uma senhora sexagenária, que vi na borda da piscina, dando adeus ao seu professor de natação, e cujos traços já se apagam na minha memória. O seu gesto despertou em mim uma imensa, uma incompreensível nostalgia, e essa nostalgia gerou a personagem a quem dei o nome de Agnès. Mas o homem não se define, e uma personagem de romance menos ainda, como um ser único e inimitável? Como então é possível que o gesto observado numa pessoa A, esse gesto que formava com ela um todo, que a caracterizava, que criava o seu encanto singular, seja ao mesmo tempo a essência de uma pessoa B e de toda minha fantasia sobre ela? Isso convida a uma reflexão: Se o nosso planeta viu passar oitenta bilhões de seres humanos, é pouco provável que cada um deles tenha o seu próprio repertório de gestos. Matematicamente, é impensável. Ninguém duvida que não haja no mundo incomparavelmente menos gestos do que indivíduos. Isso leva-nos a uma conclusão chocante: um gesto é mais individual do que um indivíduo. Para dizer isso em forma de provérbio: muitas pessoas, poucos gestos» In Milan Kundera, A Imortalidade, 1990, Editora dom Quixote, 2012, ISBN 978-972-204-881-1.
                                                                                                                        
Cortesia de EdomQuixote/JDACT