sábado, 17 de novembro de 2018

A Conquista de Santarém. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Queridos filhos e netos, os dias que antecederam a partida rumo a Santarém foram confusos para mim. Hoje, quando os recordo, concedo que a minha intranquilidade…»

jdact e wikipedia

Santarém. Fevereiro de 1147
«(…) No salão, o wali saudou-o com cordialidade e Fátima, mulher de Abu Zhakaria, apresentou-lhe a filha, também chamada Fátima e com menos de um ano. Devo-a aos conselhos de Chamoa!, recordou ela. Enquanto se deliciavam com tâmaras e presuntos, Mem contou que Zaida vivia infeliz em Silves, sob o jugo intolerante de Ibn Qasi. Sabedor de que Ibn Wasir preparava um ataque ao palácio do sufi, o cavaleiro de Almourol tencionava raptar a princesa nesse momento. Quero roubá-la ao marido, declarou Mem, antes de perguntar: aceitais vossa irmã aqui, se eu a trouxer? Depois de suspirar, Fátima respondeu que o seu antigo acinte contra Zaida desinflamara. Haviam sido Afonso Henriques, primeiro, e depois Ismar e Raimunda a intrometerem-se entre elas, mas esses tempos já lá iam. Agora, desejava a paz familiar e aprovou o regresso da irmã. Quando ides buscá-la?, perguntou. O ataque de Ibn Wasir a Silves é esperado para o Verão, disse Mem. Desejo-vos boa sorte, rematou Fátima. Despediram-se com abraços genuínos, mas mal passou a porta do palácio um agudo desconforto apoderou-se de Mem. Mentir não lhe estava na natureza e enganara o wali e a esposa. Viera falar-lhes de Zaida e em breve estaria a trepar as muralhas daquele castelo. Ajudaria os portucalenses a conquistar Santarém e depois correria a Silves, donde traria Zaida. Mas não para a entregar à irmã.
Em tempo de guerra, a verdade se enterra.

Coimbra. Março de 1147
Queridos filhos e netos, os dias que antecederam a partida rumo a Santarém foram confusos para mim. Hoje, quando os recordo, concedo que a minha intranquilidade interior: dramatizava qualquer situação, mas os comportamentos alheios também não ajudaram. Nos últimos tempos, Afonso Henriques mantivera-me à margem das decisões guerreiras, e foi só através do meu sobrinho Pêro Pais que soube estar para breve uma segunda tentativa de tomar Lisboa. Os cruzados estão a caminho?, espantei-me. O meu melhor amigo já não me incluía no seu grupo de conselheiros, agora formado por Peres Cativo, Pêro Pais e o arcebispo João Peculiar. Tantos anos de lealdade haviam terminado sem uma explicação razoável. Teria sido o novo mordomo-mor, um galego, a colocar-me de fora? Ou o arcebispo de Braga determinara o meu afastamento? Foi Chamoa quem finalmente me explicou as razões da distância real: dona Mafalda não gosta de vós! Desde Dijon que antipatizara com a rainha, destinando-lhe apenas frios cumprimentos. Agora, pagava o preço: para acalmar a esposa, o rei de Portugal afastara-me. Descansai, Lourenço Viegas, não sois o único que a francesa abomina!, garantiu-me a minha cunhada». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT