domingo, 25 de novembro de 2018

Inquisição de Évora. Dos Primórdios a 1668. António Borges Coelho. «O terceiro vigia do dia foi Gonçalo Fernandes, homem do meirinho. Viu estar a dita presa assentada sobre a cama fazendo rede e tinha a sua comida coberta sobre o fogareiro»


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Cárceres e quotidiano
«(…) Não faltam os corredores, como vemos pelas plantas de Mateus Couto. O que falta é, espaço, mesmo quando o preso ocupa sozinho uma cela. Os desgraçados não sabem se hão-de estar sós ou acompanha-os. Se ficam sós têm falta de todo o comércio humano, porque só lhe abrem a porta de fora, às suas horas, pela grade da segunda porta. O mercador e lavrador Lopo Gonçalves, o Cavaleiro, de Elvas, de 58 anos, pertinaz e negativo, podia desfrutar ainda do conforto relativo, à sua custa, de que dá notícia o espólio que deixou na cela quando saiu a caminho da fogueira: um cobertor de Castela (velho); outro cobertor branco já roto; mantéu, calças, camisas, lenços, cinta, chinelos, dois pelotes, mantéu pardo, colchão, coberta; toalhas de mesa; pano de cabeça; guardanapos velhos; um bufete velho e paus de talabarte; uma bolsa velha com trinta réis e dois ceitis; meia caixa de marmelada e outra vazia; um pente; um pouco de açúcar torrado, umas Horas de Nossa Senhora muito velhas; e uma canastra pequena onde estão as miudezas.

Nos cárceres de vigia
Havia cárceres especiais, os cárceres de vigia, onde, por orifícios escondidos nas paredes ou no tecto, o preso ou presa incomunicáveis eram controlados nos seus passos as vinte e quatro horas do dia. Isabel Álvares, tia-bisavó do filósofo Bento Espinosa, viúva, natural da Vidigueira, condenada a relaxe à justiça secular e, usando com ela de muita misericórdia, deixando o rigor de direito que suas culpas mereciam, reconciliada já no cadafalso do auto-da-fé de 12-7-1598 (processo nº 4676), esteve num destes cárceres de vigia da Inquisição (maldita) de Évora. O primeiro espia escalado, Agostinho Fernandes, familiar do Santo Ofício (maldito), foi por mandado dos senhores inquisidores à vigia da quarta casa do corredor novo de cima. Isabel Álvares esteve deitada até às sete horas da manhã. Nessa altura bateram à porta do cárcere e deram-lhe uma brasa de lume com que acendeu o fogareiro. E concertou nele um pouco de arroz com azeite e açúcar e sal. E assou um ovo e uma maçã. E depois da dita comida feita, a cobriu no mesmo fogareiro, por estar já o fogo apagado, e a deixou ficar sem comer nada dela. Dera os bons-dias às vizinhas com sinais batidos na parede. E que Isabel Álvares, mãos postas olhando o céu, exclamara: Senhor, livrai-me! Senhor, ajudai-me que já tardais!
Por sua vez o segundo espreita, Pedro Correia, guarda do cárcere declarava ao inquisidor: e se foi duas vezes à fresta do dito cárcere, subindo pelas grades, lançando a mão fora pela dita fresta, cabeceando com a cabeça, olhando para o céu, bulindo os beiços. O terceiro vigia do dia foi Gonçalo Fernandes, homem do meirinho. Viu estar a dita presa assentada sobre a cama fazendo rede e tinha a sua comida coberta sobre o fogareiro. Que cortara as unhas por três vezes. E depois do céu ter já, estrelas, começou a cear da comida que tinha no fogareiro, começando pela maçã assada e depois comeu o ovo. Noutro dia e noutro jejum, relata o guarda Gregório Fernandes, Isabel Álvares em pé, abria as mãos e as fechava, olhando para a fresta, bulindo com os beiços (mas ele testemunha não entendia o que ela falava), o que fez depois disto por duas vezes. E depois de o fazer a primeira vez, lavou todo o corpo; e as mãos lavou quatro ou cinco vezes; e as unhas das mãos cortou três vezes. A ceia fora agora sardinha e pão.
Num terceiro jejum ceou sardinha com cebola, pão e arroz. Quando fizeram sinal na Sé para alevantarem o Santíssimo Sacramento, a dita presa não fez oração ainda que, depois disso, deu os bons-dias a seus vizinhos do mesmo cárcere batendo na parede. Outro vigia declara:

Uma das ditas vezes, indo defronte da fresta, se foi deitar sobre a cama; e estava com as mãos postas e olhos fechados por algum espaço. E depois abrindo os olhos e as mãos, disse estas palavras; Senhor, livrai-me que estou perdida! E noutra altura; Senhor, ajudai-me e a duas filhas minhas que estamos aqui nesta amargura! E em latim; Nune demitis servum tuum! (Não abandones o teu servo!).

In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da Leitura, 1987.

Cortesia Caminho/JDACT