segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O Cerco. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Fátima fora a luz do mundo de Zhakaria, a labareda viva que dera sentido à sua existência, e o sofrimento da princesa amada diminuía-o»

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O Cerco. 1147
Lisboa, Junho de 1147
«(…) Feita a combinação que com ele queria fazer, Mem dirigiu-se à casa onde, muitos anos antes, conhecera Raimunda. Fora ali que reencontrara Sohba, a velha mulher de negro e estava certo de que era lá que Raimunda e a Pústula se escondiam.
Cama conhecida, sempre preferida.
Estavam três feddayins à porta, os últimos Mantos Vermelhos. A maioria dos assassins, vendo que a saúde de Orimar se degradava e abominando Raimunda, tinha ido a Badajoz oferecer-se a Ibn Wasir. Os três presentes, os mais dedicados, eram certamente os menos ferozes e capazes.
Bom coração, falhas na mão.
Resguardado atrás de um muro, Mem viu Raimunda vir à porta. A antiga esposa de Ismar mantinha os traços físicos, magra e tensa, mas o aspecto geral alterara-se. Parecia imitar Sohba, de quem era neta. Andava curvada, apresentava os cabelos desgrenhados e o manto que a cobria era velho, negro e poeirento. Mas Mem conhecera Sohba, aquela pantomina era falsa. Ao contrário da velha mas bondosa mulher de negro, Raimunda continuava odiosa, o olhar gélido carregado de ira não enganava. Estava em Lisboa para matar Afonso Henriques. Satisfeito, o antigo almocreve regressou ao casão e informou os companheiros de que estava na hora de irem ao palácio de Zhakaria. Quando lá chegaram, pediram para falar com o wali, que logo se enfureceu por ver ali Mem. Malik ainda ergueu o alfange, mas o cavaleiro de Almourol deu um pronto grito: sei onde está a vossa filha! Que dizeis?, balbuciou Zhakaria. Mem explicou-se, enquanto apreciava o envelhecido governador. Os cabelos tinham-se acinzentado, as rugas multiplicado, as olheiras aprofundado. Zhakaria já, não era o guerreiro implacável que Mem conhecera. Algo se danificara dentro dele, uma sombra nascera no fundo dos seus olhos.
Amor a morrer, alma a enegrecer...
Fátima fora a luz do mundo de Zhakaria, a labareda viva que dera sentido à sua existência, e o sofrimento da princesa amada diminuía-o. Mas a raiva ainda existia dentro dele. Devia cortar-vos a cabeça!, rosnou Zhakaria. Mem enganara-o, visitara-o em Santarém fingindo preocupações falsas, só para vistoriar as fraquezas da cidade. Estes nem dão luta..., incentivou Malik. O antigo almocreve deixara as armas em casa, para melhor convencer o wali das suas boas intenções, mas temeu não ser capaz de conter tanto ódio. Em silêncio, amaldiçoou Giraldo, a besta à solta. Nunca desejara ferir Fátima, por isso apresentou um pedido de desculpas. Morremos quando Alá quer, ripostou Zhakaria. Não estava interessado em pedir satisfações pelo engodo. Guerra era guerra, teria feito o mesmo. A sua única preocupação era a filha. Seria possível trazê-la para Lisboa? A minha mulher quer vê-la, antes de morrer. Mem explicou que a menina estava bem, mas não a podia entregar aos pais. Afonso Henriques jamais aceitaria devolver a criança antes de as lutas terminarem em Lisboa.
O que quer o vosso rei?, perguntou o arguto Zhakaria, que relembrou não ter autoridade na cidade. Se o conselho de notáveis entregasse Orimar, Raimunda e a Lança, disse Mem, os cristãos não saqueavam a cidade. E deixam partir os governantes com vida. Abu Zhakaria meditou em silêncio, medindo as implicações da proposta. Depois, perguntou: Afonso Henriques está convencido de que é fácil conquistar Lisboa?
Amargurado, concedeu que perdera a sua Santarém quando propusera umas tréguas ao rei de Portugal. Desde essa data, passara a ser olhado de lado pelos muçulmanos. Muitos homens recusaram-se a combater nas suas fileiras e por isso Santarém ficara exposta e enfraquecida. Mas Lisboa não. Têm mais de quinze mil soldados a defendê-la, os cristãos vão morrer como moscas!, exclamou. Mem concedeu que a luta seria imprevisível. Contudo, relembrou que um padrão se repetia na Andaluzia. Sem os africanos para os ajudar, os muçulmanos da Hispânia perdiam as guerras. Afonso VII estava a chegar a Almeria e Afonso Henriques encontrava-se às portas de Lisboa. A quem ireis pedir reforços? A Ibn Wasir? A Ibn Qasi, de quem ninguém gosta?, questionou Mem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT