quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Em Nome D’El Rei. Luís Barriga. «Estava a iniciar o ano de 1471 e a história de Portugal ia-lhe sendo revelada, ministrada pacientemente pelo professor, e essa era a parte mais entusiasmante das aulas…»

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Início de uma vida épica
Sertã. Maio de 1465
«(…) Toda a preparação a que Lopo Barriga era submetido, apesar da sua tenra idade, tinha uma forte razão de ser: advinha de ter chegado o momento de ser entregue como pajem a um senhor nobre. O pai já lhe traçara o destino, o de se tornar Cavaleiro como ele. Por isso, cedo iniciara o treino do filho, para que este não o envergonhasse e adquirisse os valores da Cavalaria. Havia feito sete anos no início do ano. Antes de atingir os catorze anos não subiria à condição de escudeiro; daí até à maioridade, continuaria as aulas de técnicas de combate, manuseio de armas, preparação física, assim como de leitura e escrita, O desejo paterno tornara-se o seu próprio anseio, pois ambicionava um dia obter tantas ou mais distinções que o progenitor, para que o Cavaleiro Pedro Barriga, finalmente, o olhasse com orgulho. Não tardaria que o senhor seu pai o fizesse transportar aos domínios de um grande senhor, para iniciar aí a sua caminhada e se transformar num grande combatente, ascendendo ao grau de Cavaleiro.
Com esse objectivo em mente, naquele dia, Pedro Barriga mandou aprontar os cavalos, dois magníficos exemplares de cavalos ibéricos. Lopo Barriga e seu pai partiram numa manhã luminosa de Primavera; as despedidas foram curtas, mas sentidas. As irmãs e a mãe vieram despedir-se, sobretudo de Lopo, pedindo a Deus para o voltarem a ver de saúde, pois sabiam que dificilmente se encontrariam nos próximos tempos. As lágrimas da criada Gertrudes fizeram as emoções invadir a garganta do jovem, mas, como sempre aprendera, um homem não chora; engolindo a comoção, montou apressadamente. As esporas fustigaram os cavalos, dando início à primeira grande aventura da sua vida. Ainda olhou para trás, procurando guardar na memória o lugar que o vira nascer, enquanto os cavalos seguiam o trilho ladeado de um manto verde.
A viagem foi cheia de peripécias e de paisagens diversas, em tudo diferentes das que se habituara a ver, mas completamente ultrapassadas pelo choque da chegada aos domínios do conde de Monsanto, Álvaro Castro; foi aos seus cuidados que o pai o deixou. Ali se versou nas incumbências adstritas ao dia-a-dia de pajem, servindo o senhor conde. O luxo de que se viu rodeado, as soberbas instalações, as magníficas cavalariças, a bem equipada armaria, tudo o impressionara. Só o treino físico a que foi submetido lhe parecia ligeiro, e isso devia-o ao senhor seu pai. No que dizia respeito aos livros, eram horas de grande martírio, espreitando, sempre que podia, a liberdade nas copas das árvores que se avistavam, ou no voo estonteante dos pássaros. A armadura e as armas de seu senhor deixaram de ter segredos; arrear o cavalo, preparando-o para os treinos, passou a ser uma tarefa simples e banal. Inúmeras vezes, no recato do espaço reservado aos equipamentos e armas de guerra do conde, envergou a sua armadura reluzente e, com esforço, esboçou movimentos de esgrima, sob o peso esmagador de toda aquela parafernália.
As idas e vindas ao Paço Real, no Castelo de São Jorge, com o seu mentor, passaram a ser comuns, assim como as longas permanências na capital do reino. O assombro de que foi acometido à primeira chegada a Lisboa foi sendo apaziguado pela frequência das visitas, proporcionando habituação ao frenesim lisboeta. Foi numa dessas incursões que conheceu o príncipe João, pouco mais velho que ele, também entregue à aprendizagem das artes da guerra. Nas permanências mais duradouras, acabou mesmo por ser integrado nos treinos dos jovens que estavam a ser educados na Corte. Aqui encarou com muitas das figuras proeminentes de quem seu pai contava histórias de aventura e heroísmo. À medida que o tempo passava e que o seu corpo se preparava para a guerra, Lopo ansiava também por saber mais sobre o mundo e a sua história. Estava a iniciar o ano de 1471 e a história de Portugal ia-lhe sendo revelada, ministrada pacientemente pelo professor, e essa era a parte mais entusiasmante das aulas, onde a escrita e os livros eram as únicas armas.

Lisboa. Maio de 1459
Um calor infernal abafava a cidade onde tudo era passível de acontecer, nesta metrópole onde arribava gente vinda de todas as proveniências. A soalheira impedia que se usufruísse da brisa marinha e dificultava as normais actividades portuárias. Foi assim que se sentiu um senhor de aparência nobre ataviado, secundado por alguns serviçais. Desembarcou aos ombros de um dos possantes marinheiros, não fosse a areia lamacenta da praia conspurcar o digníssimo calçado que ostentava. Já, com os pés em terra firme, limpava o suor que lhe escorria pela face, sob o sol a pique. Apondo a mão em jeito de pala, protegendo os olhos, perscrutou a azáfama do ancoradouro, procurando algo. Assombrou-se com a riqueza das mercadorias comercializadas no porto de Lisboa e percebeu que já atracavam à capital portuguesa muitas das riquezas de África, entre elas, os escravos negros». In Luís Barriga, Em Nome D’El Rey, Clube do Autor, Lisboa, ISBN 978-989-724-448-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT