sábado, 10 de novembro de 2018

A Cidade das Damas. Luciana Eleonora F. Calado. «Malgrado o reconhecimento da escrita das mulheres, enquanto objecto e sujeito, proclamada em especial nos anos 70, com o movimento de libertação das mulheres, a questão actual…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco para a obtenção do grau de doutor em Teoria da Literatura

Dama Christine Pizan
«(…) Ao observar, entre aquelas obras escritas por mulheres, um inegável contorno dessa écriture féminine, pus-me a lembrar-me do célebre artigo de Barthes, La mort de l´auteur, onde ele destitui o autor da condição que lhe foi atribuída, a de paternidade do texto. Diante da intrínseca relação da enunciação com o eu enunciador, seria possível fazer a leitura daqueles textos femininos, como sendo textos órfãos? Poderíamos pensar a escrita feminina apenas como linguagem desprovida de uma autoria? Acredito que seria inútil tentar afastar o sujeito feminino das suas crias, como se o corpo do texto não fosse o mesmo constituído do sujeito. Barthes poderia até estar certo, ao referir-se à morte do autor, mas não o seria referindo-se a autoras, ou a outra autoria marginalizada: étnica, homossexual, colonizada, na medida em que, como salienta Edward Said:

Os estudos feministas, assim como os estudos étnicos ou imperialistas, promovem um deslocamento radical de perspectiva ao assumirem como ponto de partida das suas análises o direito dos grupos marginalizados de falar e representar-se nos domínios políticos e intelectuais que normalmente os excluem, usurpam as suas funções de significação e representação e falseiam as suas realidades históricas.

Importante no seu contexto de efervescência do Maio 68 na França, a proposta de Barthes de morte do autor marca a passagem do estruturalismo sistemático ao pós-estruturalismo da desconstrução, que propõe o descentramento da noção de sujeito, e introduz as ideias de alteridade, da diferença, da marginalidade. Os pós-estruturalistas Derrida, Foucault, Deleuze, Khristeva tiveram papel inegável na desconstrução da soberania falocêntrica como identidade subjectiva. Seria preciso desconfiar desse primado masculino da palavra e abrir espaço à questão da alteridade, conceito que influenciou de forma marcante grande parte das teorias feministas. No entanto, como ressalta Heloísa Buarque de Holanda, o pensamento pós-estruturalista e as teorias feministas se distinguem pelo compromisso feminista com a articulação da crítica da hegemonia do idêntico e da legitimidade dos sentidos absolutos e universais com os processos históricos de construção e representação da categoria mulher. Outro ponto de distinção entre os discursos pós-estruturalistas e os da crítica feminista é que se os primeiros falam de uma crise da representação e da morte do social, o segundo fala exactamente da necessidade de uma luta pela significação. A busca por esse espaço significante na História constitui a essência da escrita feminina como meio de libertação através da autonomia de expressão. A questão da autonomia apresenta-se como o desafio feminino enquanto sujeito colectivo de construir uma outra verdade livre das estruturas de poder e dominação características do discurso androcêntrico. Segundo Oberti:

O patriarcado, ou como queiramos denominar o sistema de dominação, não é um sistema fechado [...], mas sim formas hegemónicas de poder, masculino, que revelam as suas próprias falhas [...] a tarefa estratégica do feminismo é explorar essas brechas onde houver e também ajudar a produzi-las.

Entre tais brechas, o olhar feminino foi focalizando a sua própria representação do mundo e expressando-a a duras penas através da escrita. E, o resultado dessa autoconsciência estava ali naquelas estantes da biblioteca Marguerite Durand: um grande monumento da memória feminina.
Escrever a história das mulheres continua ainda nos nossos dias uma tarefa intricada. Malgrado o reconhecimento da escrita das mulheres, enquanto objecto e sujeito, proclamada em especial nos anos 70, com o movimento de libertação das mulheres, a questão actual continua emaranhada de interrogações, de pré-julgamentos, de buscas, reivindicações, como sempre aconteceu nas tentativas femininas de escrever a sua própria história, de romper com o olhar androcêntrico da história no masculino. Se figuras femininas, a partir do fenómeno literário e cultural da Querelle des femmes (estendido por quatro séculos, entre o século XIV e o XVII), sempre mantiveram a sua participação no processo de elaboração e desenvolvimento de grandes debates políticos e intelectuais do momento, tiveram que resistir a vários obstáculos, percorrendo um caminho muito mais longo e espinhoso do que aquele dos homens. As portas fechadas das universidades, a concepção reinante de uma natural inferioridade intelectual, os preconceitos morais da profissionalização feminina e todas as estratégias possíveis de torná-las excluídas do saber e da construção política e mental da sociedade, são testemunhos, de um lado, da dificuldade enfrentada pelas mulheres do saber, e do outro, da impossibilidade de nulificar o saber feminino, ao tentar condenar as suas ideias ao esquecimento». In Luciana Eleonora F. Calado, A Cidade das Damas, A construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan, Teses de Doutoramento, Universidade de Pernambuco, Recife, 2006.

Cortesia de UniversidadeP/CAC/TeoriaL/JDACT