Uma
história da Itália do século XIX
«(…) Naquela Primavera, sua mãe
insistiu com seu pai para que construísse alguma espécie de abrigo na margem, e
ele ergueu uma cabana de um único cómodo, de madeira sem pintura, tingida de vermelho,
a alguns passos da água. A luz penetrava na cabana através das vidraças das
janelas instaladas nas quatro paredes. Uma colecção de tapetes gastos cobria o
assoalho, a mobília era escassa: um velho sofá recoberto com colchas de
retalhos de veludo, uma escrivaninha e uma cadeira. O cómodo era pequeno.
Parado no centro dele, com os braços estendidos, o pai de Carolina quase podia
tocar as duas paredes. Uma lareira aberta ao pé de uma fina chaminé e protegida
por uma tela ornamentada com sereias de bronze, outro presente
bem-intencionado, mas mal sucedido, de seu pai para sua mãe, que considerava
todo lembrete do mar não um conforto, mas um motivo de pesar. Depois que a
cabana foi construída, a casa grande perdeu inteiramente o interesse para
Carolina. Ela passava mais noites do que restava de sua infância no sofá da
cabana do que na própria cama, enterrada como um rato do mato de olhos negros
em pilhas de veludo grosso, ou nua no calor do sol de verão deixado como recordação
depois do anoitecer. Nas noites quentes, ela escancarava as janelas e pregava
xailes finos sobre elas para barrar os insectos. Do lado de fora, as rãs e os
pássaros cantavam suas bazófias, esperanças e ameaças. Por ter conhecido o lago
pela primeira vez com os olhos de uma criança, Carolina acreditou por algum
tempo que o facto de já não poder abarcar o lago inteiro com um único olhar
fosse apenas mais uma das muitas peças que seu corpo lhe pregara na misteriosa operação
de transformá-la em uma moça. A igreja, a distância até a cidade e a grandiosa
extensão antes infinita do salão de baile, tudo havia encolhido conforme ela
crescia. Por que haveria de ser diferente
com o lago? Mas pouco depois de ter completado dezoito anos, mais ou
menos na época em que ela e Pietro ficaram noivos, o problema com o foco nas
bordas do seu campo de visão aumentou significativamente. Ela já não conseguia reconhecer
figuras numa dança enquanto não se voltasse directamente para elas. Ao mesmo
tempo, a sua vista sofreu uma contracção, como se algum espírito invisível
tivesse colocado as mãos em concha de cada lado de sua cabeça, bloqueando a sua
visão à direita e à esquerda. O resto se perdia na escuridão.
Turri, é claro, compreendeu
imediatamente. Ele ergueu as mãos nos dois lados do próprio rosto. Assim?, ele perguntou. Carolina
balançou a cabeça afirmativamente. Por um instante, seus olhos azuis arregalaram-se
de preocupação. Então, mudaram. Ele continuou olhando directamente para ela,
mas o foco do seu olhar estava em algo muito para além dela, a sua mente percorrendo
os livros de uma biblioteca invisível. Carolina detestava aquela expressão: às
vezes, passava num instante, mas geralmente significava que ela o perdera para os
seus pensamentos pelo resto da tarde. Por agora, entretanto, ele ainda reunia
provas. Há quanto tempo?, ele
quis saber. Meio ano, ela respondeu. Desde antes do Natal. Além da seda pregada
nas janelas da casa do lago, um pássaro de verão entoou algumas notas, em
seguida recaiu em silêncio. Já li sobre isto, comentou Turri. A cegueira pode
vir dos cantos ou do centro. Do centro?,
repetiu Carolina. Como um eclipse, no centro da sua visão. Mas é permanente. E
a escuridão expande-se a partir daí. Mas no meu caso está vindo de fora,
declarou ela. É o outro tipo. Lágrimas assomaram aos olhos de Carolina. Ela
deixou que turvassem a vista, grata por uma cegueira que podia limpar com um
movimento do pulso. Quando as lágrimas passaram, Turri permaneceu sentado,
fitando-a, como se ela fosse um novo problema de matemática. Quanto tempo?, ela perguntou. Tenho
certeza de que varia em cada caso. Quando ela não desviou os olhos, ele abaixou
os seus. Posso descobrir, disse Turri. Obrigada. Já contou a Pietro?, ele perguntou. Ela balançou a cabeça, confirmando.
Turri analisou-a por mais um instante, em seguida deu uma risada curta. Mas ele não sabe. Ela meneou a
cabeça, indicando que não. Turri tomou a sua mão. Desta vez, ela permitiu.
Carolina e Turri encontraram-se
pela primeira vez quando ela era uma menina de seis anos e ele tinha dezasseis.
A sua mãe decidira naquela primavera que Carolina já tinha idade suficiente
para comparecer ao baile da floração dos limoeiros de seu pai, que ele realizava
todos os anos quando os seus arvoredos de folhas enceradas explodiam em flores,
para assinalar a sua gratidão ao novo sol da primavera, aos santos ou a quaisquer
deuses que ainda pudessem estar à espreita nas velhas colinas. Carolina tivera
permissão de escolher o tecido de seu próprio vestido: um brocado azul da cor
do ovo de um pintarroxo, enfeitado com renda branca da exótica e inconcebivelmente
distante Suíça. Ela passou uma dúzia de tardes no ateliê da costureira, onde o
ar era denso de partículas cintilantes de poeira e do aroma de lírios e flores
de manjericão que vinha do aposento ao lado, onde as criadas arrumavam as
flores que tinham colhido no quintal. Enquanto Carolina observava, a velha e
paciente senhora cortou o tecido para o corpete e para a pequena saia em forma
de sino, depois alinhavou tudo, trazendo à vida o traje em miniatura, a agulha nos
seus dedos tortuosos passando a linha pelas dobras do tecido com tal rapidez
que Carolina às vezes a perdia de vista.
Quando o vestido ficou pronto,
três dias antes da festa, Carolina teve medo de morrer de alegria. A velha
senhora pendurou-o no seu armário, onde ele brilhava ao sol da manhã como um
pedaço do céu. Durante aquelas três noites, Carolina só conseguiu dormir espasmodicamente.
Frequentemente, deslizava da cama para se certificar, pelo tacto, de que o
vestido ainda estava lá e que ela não estava sendo enganada pelos seus sonhos,
como tantas vezes acontecia. Embora tivesse permanecido de pé por muitas horas
sem se queixar, enquanto o vestido era medido e ajustado, ela recusou-se a
experimentá-lo depois de terminado, em parte guardando a ocasião como guardaria
uma bala no bolso até o final do dia e em parte aterrorizada com a
desconhecida, mas sem dúvida profunda mudança que se passaria com ela no
instante em que o vestisse». In Carey Wallace, A Condessa Cega e a
Máquina de Escrever, tradução de Geni Hirata, Editora Rocco, 2011, ISBN
978-853-252-713-4.
Cortesia de Rocco/JDACT