Nota: De acordo com o
original
«(…) Á medida que o sol
ia subindo, no céo glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para
sitios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem que ia valente. Calor de
rachar, ali por volta do meio dia, que foi quando tomaram para a banda das
azinheiras, e para os pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois
companheiros levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que
as horas passassem tão depressa. Ainda armaram aos passaros, mas foi o mesmo
que nada, os demonios andavam espantados e já conheciam as esparrellas. Olha lá
não caiam, tinha dito o Gonçalo, já cançado de estar á espreita, agachado, com
o fio da armadilha preso ao dedo. Se eles fossem tolos... E foi-se a recolher as
esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella então propoz que jogassem a
pocinha. E o fito, ó Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos de tarde, bato-me
com qualquer, sabias? E generoso: Mas a ti dou te partido: vinte e
cinco ás quarenta... Como o tempo rendia, jogaram tudo, a pocinha, o fito, as
necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia á mão, era elle que ia buscar
o pausinho, quando zinia longe. Turco, traz cá!
No emtamto, ia descaindo
a tarde. Ao alto, o largo céo esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o
espaço o ar estava tranquillo e sereno, e já começava para poente a decoração
phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar das aguas
no rio; já não faiscava assim tão viva a areia branca das margens. Foi quando o
Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as
terras onde tinham de pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da
Rosaria, disse-lhe assim: Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste? Ora que lhe custava a ella! Já que as
ovelhas tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no
mesmo curral, essa noite? E o
mais, ó Rosaria?, perguntou de novo com interesse. A pequena ficou
perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar, respondeu: Tambem.
E sorriu-se. Pois eu... Só depois d'esta segunda promessa o Gonçalo se
levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos cães. D'ahi a pouco,
estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha ponte, a obliquidade
dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos tres
arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando á agua a
sua translucidez normal. É bonito!, fez notar o pastor. A
Rosaria explicou logo: São as moiras a
caçar com redes d'oiro, sabias? Para a outra banda, um pouco mais
abaixo, assomavam á flôr da corrente as cabeças dos dois rapazotes do moleiro.
Dentro da chata que vogava serenamente, a mãe com o mais novito ao collo não os
perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de pé n'um topo de fraga,
lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, tres vitellas passavam o rio a vau, muito
devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a veia d'agua serena,
bebendo mansamente. Sobre o vitello das malhas brancas, o guardador
cantarolava, acenando com o chapeu ao moleiro, boas tardes! Boas tardes!
Ao sahir da ponte, o
rebanho teve de se affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com
a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas. Adeus pequenos!,
cumprimentou. Venha com Deus!, tornaram-lhe ambos. E de novo se pozeram em
marcha. As ovelhas continuavam confundidas, confraternisavam os cães como bons
e leaes amigos. Á frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosaria
cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho,
casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota subtil, d'um pittoresco ingenuo
de ballada... Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal
rasteiro, e então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, collocando na sua
frente a Rosaria, e pondo-lhe á cara a flauta, na direcção em que devia olhar. Vês além... n'este direito? Rez-vez do castanheiro, não enxergas?
A outra fez que sim com um gesto, e interrogou: Então é ali? Ali mesmo, volveu-lhe já de marcha. E
repoisando a mão direita sobre o hombro esquerdo da rapariga, epetiu-lhe muito
contente: É mesmo além.
N'uma terra de restolho,
um largo quadrado de cancellas marcava o espaço que as ovelhas tinham de
occupar essa noite. Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só mau p'ra quem
passa a cavallo. E como elle ia expansivo, e a companheira não dava palavra,
quiz então saber: Estás triste, ó
Rosaria? Triste..., não. Já agora..., tem de ser, volveu-lhe
cabisbaixa. Huum! Arrependeu-se..., volveu comsigo o pastor. Até que por fim
chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar;
o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia azeitonas, um naco de queijo,
pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo apontou para a cabana que ficava alli
perto, e propoz que se deitassem: estavam moídos da soalheira de todo o dia e
da caminhada agora. Quando o Gonçalo e a Rosaria entraram na cabana e se
deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um
do outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrára de todo a noite, e formigueiros
de estrellas scintillavam vivezas de prata polida no azul indefinido do céo. E os lobos?, perguntou a Rosaria
com medo. Não ha perigo, tranquilisou-a o Gonçalo.--Isso é lá com os cães». In
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO
88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita
Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
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